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Como “Born to Run” salvou Bruce Springsteen e reinventou o rock da classe trabalhadora

Angústias e contradições dos anos 1970 cristalizam a primeira obra-prima que elevou The Boss — e a E Street Band — ao panteão da música

Bruce Springsteen não poderia estar sendo mais sincero quando cantou “We got one last chance to make it real” (“Temos uma última chance de tornar isso realidade, na tradução livre em português”) em um dos versos de “Thunder Road”, música que abre o álbum “Born to Run” (1975), primeira obra-prima de sua carreira.

A frase em tom de alerta é proferida por um eu-lírico ansioso apenas em cair na estrada com sua garota para ver o que acontece. Mas também vale como metáfora para Bruce e sua banda de apoio, a E Street Band. Após dois discos fracassados em vendas, o contrato com a Columbia Records estava por um fio. O risco de serem sumariamente descartados pela gravadora era iminente.

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Acossado, Bruce entrou em estúdio para matar ou morrer. O terceiro álbum haveria de salvar sua pele. E salvou.

“Born to Run”, a começar pela faixa-título, trouxe canções que cristalizaram angústias e contradições da década de 1970, destinadas a um público urbano ávido por elas. Foi um disco em comunhão com a classe trabalhadora, portanto, que o elevou junto à E Street Band ao panteão da música.

A busca pela perfeição

Nascido em 1949 na cidade de Long Branch, Nova Jersey (EUA), Bruce Springsteen começou sua trajetória tocando em bares e pubs da região. Ocasionalmente, também se apresentava em Manhattan, o epicentro de Nova York, mas seu interesse e o cerne de suas composições estavam mesmo no lado humilde e menos abastado daquela área, a oeste do Rio Hudson.

Seus dois primeiros discos — “Greetings from Asbury Park, N.J.” e “The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle”, ambos de 1973 —, são crônicas inteligentes e verdadeiras sobre o lugar onde viveu. As letras romantizavam a vida adolescente nas ruas de Nova Jersey e redondezas.

Ambos venderam muito pouco, mas foram elogioados pela crítica. As primeiras comparações com Bob Dylan não demoraram a aparecer. “Ele canta com um frescor e uma urgência que eu não ouvia desde que fui embalado por ‘Like a Rolling Stone’, escreveu Peter Knobler, editor da revista Crawdady.

Bruce sabia, no entanto, que só elogios de jornalistas e entendedores de música folk não seriam suficientes para manter sua carreira de pé. Em entrevista à Rolling Stone em 2020, ele relembrou esse período de incertezas com a Columbia, sua gravadora:

“Eu tinha contrato com John Hammond (produtor) e Clive Davis (empresário), mas depois do meu primeiro disco, Clive saiu (da Columbia) e eu caí em desuso com o segundo disco. Um grupo diferente de pessoas chegou. Ninguém tinha interesse em mim, e estávamos apenas passando despercebidos. Acho que quando ‘The Wild, the Innocent and the E Street Shuffle’ foi lançado, não foi muito divulgado. Eu sempre me lembro de ir a rádios onde eles não sabiam que eu já tinha um segundo disco.”

Diante do fracasso inicial, Bruce Springsteen se viu na obrigação de entregar um disco irretocável. Algo que fosse divisor de águas para ele e a banda. Era necessário buscar a perfeição e impactar o grande público nos Estados Unidos.

“Eu queria fazer o melhor disco de rock que eu já tinha ouvido, e queria que soasse enorme, queria que te agarrasse pela garganta e insistisse para que você embarcasse nessa jornada, insistisse para que você prestasse atenção, não apenas à música, mas à vida, a se sentir vivo, a estar vivo.”

Nessa época, por volta de 1974, Bruce já havia ganhado o apelido de “The Boss”. A alcunha veio justamente por centralizar todas as decisões e realizar até mesmo as tarefas mais burocráticas referentes à banda, como cuidar das finanças, do fluxo de caixa, da contabilidade e lidar com as correspondências

Artisticamente falando, o chefão da E Street Band também passou por uma metamorfose. As canções, antes baseadas majoritariamente no folk, na gaita e em arranjos prosaicos, ganharam nova proporção. Bruce estimulou o uso de piano e instrumentos de sopro, melodias mais refinadas de R&B e uma predileção por composições dramáticas, conforme ele destacou à RS:

“Parte do que tornou o disco bom é que fomos a extremos para estruturá-lo, compô-lo e tocá-lo de uma forma tão detalhada e enlouquecedora.”

Ele acrescenta:

“O fato das novas músicas terem essas introduções elaboradas, partes melódicas e uma variedade de movimentos pode ser atribuído à forma como os discos de Roy Orbison foram compostos. Mas também era algo de que eu gostava. Suponho que, quando você faz isso corretamente, uma boa introdução e um bom final fazem a música parecer que está surgindo de algo e evoluindo para algo. Como se fosse parte de uma continuidade. Também era dramático e tinha o objetivo de preparar a música.”

Hits grandiosos

Por consequência, as músicas de “Born to Run” tendem a ser grandiosas. Desde a já citada “Thunder Road” até a tristeza heroica de “Backstreets”, com sua introdução ao piano. Da emoção à flor da pele com o saxofone de Clarence Clemons na faixa-título até a épica “Jungleland” e seus mais de nove minutos.

Todavia, isso não impediu que várias delas se tornassem hits, como “Tenth Avenue Freeze-Out” e “She’s the One”. “Thunder Road”, por exemplo, sequer foi lançada como single e é a segunda música mais tocada ao vivo em toda sua carreira.

À Rolling Stone, ele comentou sobre a canção que abre o álbum:

“Há algo na melodia de ‘Thunder Road’ que simplesmente sugere um novo dia’, sugere manhã, sugere algo se abrindo. É por isso que essa música acabou em primeiro lugar no disco. ‘Thunder Road’ era tão obviamente uma abertura, devido à sua introdução.”

Entretanto, coube a “Born to Run”, a música, inaugurar o disco perante o público e a crítica. A faixa-título foi lançada como single e distribuída seis meses antes do álbum ficar pronto. Foi um tremendo sucesso e até hoje é o maior hino de Springsteen.

A letra narra em primeira pessoa o espírito livre da juventude inquieta de meados dos anos 1970, que a essa altura do campeonato clamava por um tipo de liberdade muito mais palpável que a da década anterior. A olho nu, pode soar como escapismo barato. Porém, caiu como uma luva entre os anseios da classe trabalhadora, como o operário que deseja ardentemente… o fim do expediente.

Joshua Zeitz, do The Atlantic, descreve o impacto causado:

“Jovens lotaram lojas de discos em busca de cópias do novo single, que ainda não existia, e rádios que não estavam na pequena lista de distribuição bombardearam com pedidos do novo álbum, que também não existia. Na Filadélfia, a demanda pela faixa-título foi tão forte que a WFIL, estação de rádio AM mais tocada da cidade, a transmitiu várias vezes por dia.”

Ele arremata:

“Na classe trabalhadora de Cleveland, o DJ Kid Leo tocava a música religiosamente às 17h55 todas as sextas-feiras à tarde na WMMS, para ‘lançar oficialmente o fim de semana’.”

A demora no lançamento do disco se deu pelo idealismo de Bruce, que, como dito, almejava oferecer ao mundo a obra perfeita. Foram meses torturantes trabalhando e, por vezes, refazendo as músicas junto à E Street Band. Segundo ele, chegou ao ponto de “ouvir sons em sua cabeça” que não conseguia explicar aos outros músicos no estúdio.

O próprio admitiu à RS que estava tomado pela insegurança. Chegou a recusar várias mixagens do álbum — um dos acetatos originais chegou a ser jogado em uma piscina de hotel — antes de aprovar a versão final, em agosto de 1975:

“Parte disso era porque eu tinha medo de lançar o disco e simplesmente dizer: ‘Bem, este é quem eu sou’. Por todos os motivos óbvios pelos quais as pessoas têm medo de se expor: ‘Este é quem eu sou, isto é tudo o que eu sei, este é o meu melhor, este é o melhor que posso fazer agora’.”

Todavia, como há males que vêm para o bem, Bruce cita que o atraso no lançamento do álbum acabou permitindo-o surfar no sucesso do single:

“Demoramos tanto com o disco que entregamos a música para as rádios achando que estávamos quase terminando, mas não foi isso que aconteceu. Então, muito tempo se passou antes do álbum ser lançado e algumas coisas boas aconteceram. Uma delas é que a música em si tocou bastante nas rádios, e houve um grande burburinho em torno dela. Acho que o que fez o álbum ter todo esse burburinho foi o fato de ‘Born to Run’, a faixa, ter sido tocada por um bom tempo nas rádios FM.”

Pacto com a classe trabalhadora

De acordo com o historiador Louis Masur, “o sucesso do álbum estava ligado ao medo de envelhecer de uma geração de adolescentes tardios”. Em outras palavras, indica que o futuro nos Estados Unidos já não era mais tão promissor como outrora. Bruce Springsteen soube encapsular isso nas letras, simples e objetivas, de “Born to Run”.

Citando outro verso de “Thunder Road” (“You’re scared and you’re thinking that maybe you ain’t that young anymore” / “Você está com medo e pensa que talvez não seja mais tão jovem”), o próprio The Boss contextualiza:

“As músicas foram escritas logo após a Guerra do Vietnã e todo mundo se sentia assim naquela época. Não importava a idade, todos vivenciaram uma mudança radical na imagem que tinham do seu país e de si mesmos. Você seria um tipo diferente de americano da geração que o precedeu. Um tipo radicalmente diferente, então aquela frase foi apenas um reconhecimento desse fato.”

Ao contrário, porém, da tendência de descrever os anos 1970 como um período social e politicamente estéril, talvez até ideologicamente egocêntrico, Joshua Zeitz, do The Atlantic, afirma que “em resposta à turbulência da década, as comunidades da classe trabalhadora exibiram uma ampla gama de expressões políticas de base”, o que favoreceu a absorção da música do cantor e compositor de Nova Jersey:

“O avanço fenomenal de Bruce Springsteen em 1975 só pode ser compreendido em um contexto de profunda perturbação e ativismo urgente, particularmente nas comunidades da classe trabalhadora, que absorveram tantos dos choques econômicos e culturais da década. Esta é uma geração diferente de trabalhadores. Nenhum desses caras veio do velho país, pobre e faminto, grato por qualquer emprego que conseguisse. Nenhum deles passou por uma depressão. Eles foram expostos — pelo menos pela televisão — a todos os movimentos juvenis dos últimos dez anos… Eles simplesmente não vão aceitar o mesmo tipo de tratamento que seus pais aceitaram… Eles querem mais do que apenas um emprego por 30 anos.”

Joshua Zeitz conclui:

“Springsteen personificou os anos setenta perdidos — a rejeição tensa e política da classe trabalhadora às limitações da América.”

Em outubro de 1975, as revistas Time e Newsweek estamparam, ao mesmo tempo, Bruce Springsteen, à época com apenas 25 anos, em suas capas da semana. A Time, especificamente, exaltou “Born to Run” como uma “regeneração e renovação do rock”.

É possível dizer que Bob Dylan, Nina Simone, The Who, Curtis Mayfield, Marvin Gaye e até mesmo os Beatles, entre outros na música pop, já haviam pelo menos resvalado em aspectos caros ao trabalhador. Mas coube a Bruce Springsteen atualizar o debate, promovendo novos mecanismos de escape perante a decepção e os muitos becos sem saída do pós-Guerra do Vietnã.

Combinando elementos de rock, R&B, soul music da Motown, jazz e pop, além de um discurso em convergência com o espírito de seu tempo, “Born to Run” obliterou o tédio e a falsa esperança por dias melhores nos Estados Unidos, oferecendo paisagens de risco e aventura, ou, na pior das hipóteses, boas doses de angústia jovem e proletária. O que também é legítimo e permanece atual, mesmo passados 50 anos.

Bruce Springsteen — “Born to Run”

  • Lançado em 25 de agosto de 1975 pela Columbia
  • Produzido por Bruce Springsteen, Mike Appel e Jon Landau

Faixas:

  1. Thunder Road
  2. Tenth Avenue Freeze-Out
  3. Night
  4. Backstreets
  5. Born to Run
  6. She’s the One
  7. Meeting Across the River
  8. Jungleland

Músicos:

  • Bruce Springsteen – vocais, guitarra (todas as faixas exceto 7), gaita (faixa 1), arranjo de instrumentos de sopro (2)
  • Roy Bittan – piano (todas as faixas exceto 5), órgão (faixas 4, 6 e 8), glockenspiel (1 e 3), cravo (3 e 6), backing vocals (1)
  • Clarence Clemons – saxofones (todas as faixas exceto 4 e 7)
  • Garry Tallent – ​​baixo (todas as faixas exceto 7)
  • Max Weinberg – bateria (todas as faixas exceto 5 e 7)
  • Ernest Carter – bateria (faixa 5)
  • Danny Federici – órgão (faixa 5), glockenspiel (5)
  • David Sancious – piano (faixa 5), piano Fender Rhodes (5), sintetizador (5)

Músicos adicionais:

  • Mike Appel – backing vocals (faixa 1)
  • Steven Van Zandt – backing vocals (faixa 1), arranjo de metais (2)
  • Randy Brecker – trompete (faixas 2 e 7), flugelhorn (2)
  • Michael Brecker – saxofone tenor (faixa 2)
  • David Sanborn – saxofone barítono (faixa 2)
  • Wayne Andre – trombone (faixa 2)
  • Richard Davis – contrabaixo (faixa 7)
  • Suki Lahav – violino (faixa 8)
  • Charles Calello – arranjos de cordas e regência (faixa 8)

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room, Rock Brigade e Guitarload. Atualmente, é redator na Rolling Stone, revisa livros das editoras Belas Letras e Estética Torta e edita o Morbus Zine, dedicado a resenhas de death metal e grindcore.

1 COMENTÁRIO

  1. grande resenha, parabéns, informações detalhadas e relevantes, historicamente e artisticamente e, parafraseando a corretíssima assertiva do autor logo no início do texto, ” primeira obra-prima de sua carreira”, de várias que viriam depois

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