De modo geral, “Killing Machine” (1978) foi um dos álbuns mais importantes do Judas Priest. Produzido por James Guthrie, o disco marcou uma fase em que a banda — Rob Halford (vocais), Glenn Tipton (guitarra), K.K. Downing (guitarra), Ian Hill (baixo) e Les Binks (bateria) — afrouxou as porcas e simplificou seu estilo de composição.
Muitas das faixas do disco ficaram mais curtas e diretas e, por isso, mais marcantes — como o bem-sucedido single “Take on the World”, adotado como música-tema pelo time de futebol inglês Wolverhampton Wanderers, e o cover de “The Green Manalishi (With the Two-Pronged Crown)”, do Fleetwood Mac, até hoje presença garantida nos shows do grupo.
O ótimo momento foi coroado com a gravação de um álbum ao vivo no Japão, entre o fim da turnê britânica de outubro e novembro de 1978 e o início da longa série de shows que percorreu América do Norte e Europa no decorrer de 1979. A recepção a “Unleashed in the East” — frequentemente apontado como o melhor disco ao vivo da história do heavy metal — facilitou a escolha do produtor para o próximo trabalho do Judas. Havia apenas um nome no páreo: Tom Allom.
A banda, então, aprimorou a fórmula de um álbum e se valeu da expertise do produtor do outro para dar o pontapé inicial em seu sexto disco de estúdio.
“O álbum que viria a ser ‘British Steel’ se mostrou um sonho de fazer desde o primeiro dia”, escreve Halford em sua autobiografia “Confesso” (Belas Letras, 2021). “Tom nos ajudou a eliminar os excessos das músicas até que só restasse um núcleo visceral, reluzente e metálico. Nosso ethos passou a ser ‘o mínimo é o máximo’ (…) Sabíamos que aquilo ali era especial”.
Os astros estavam alinhados.
Um novo baterista… de novo
Pouco antes do início da já mencionada turnê norte-americana, o baterista Les Binks deixou o Judas Priest.
Les havia se juntado ao grupo como seu quarto baterista, sucedendo John Hinch, Alan Moore e Simon Phillips, em 1977. Ele gravou os álbuns “Stained Class” e “Killing Machine”, além de tocar no ao vivo “Unleashed in the East”. Também é creditado como coautor de “Beyond the Realms of Death”, um dos maiores hinos do repertório do Judas.
Durante uma participação no canal The Metal Voice no YouTube, Binks relembrou sua passagem pelo Priest e explicou os motivos de sua saída. Questionado sobre o que o levou a deixar a banda, ele citou questões financeiras e a falta de status como membro oficial:
“Dinheiro, ou a falta dele. Minha situação era diferente da dos outros caras da banda. Eu não tinha contrato com a gravadora e, quando chegou a hora de lançar o álbum ao vivo ‘Unleashed in the East’, os empresários acharam que eu deveria fazer isso de graça. Esse disco se tornou um sucesso, vendeu mais que todos os anteriores, e os empresários não queriam me pagar por ele… uma loucura (…) Acho que pensaram que, como o álbum foi gravado durante nossa turnê no Japão e eu já estava sendo pago pelos shows, eles poderiam usar as gravações sem me compensar pelo lançamento. Mas as coisas não funcionam assim.”
Do ponto de vista estritamente artístico, a saída de Les — um jazzista por excelência — acabou sendo conveniente, segundo Halford, em depoimento a Martin Popoff na biografia “Judas Priest: Heavy Metal Painkillers” (ECW Press, 2007):
“Queríamos voltar àquele estilo de bateria mais simples, sólido e estável, quase à la [John] Bonham. E encontramos tudo isso em Dave Holland.”
Oriundo da cena londrina e com anos de experiência em bandas como Finders Keepers e Trapeze — ambas com Glenn Hughes —, Dave Holland era o tipo de músico que realmente queria viver na estrada. Estivesse isolado em uma ilha gravando um disco ou em turnê fazendo centenas de shows, ele sempre estaria comprometido. Segundo K.K., ao contrário de Les, “ele era um verdadeiro membro da banda”.
Holland assumiu as baquetas em agosto de 1979, aos 31 anos, e permaneceu no posto por quase uma década. Registrou todos os álbuns de estúdio da fase mais comercialmente bem-sucedida do Judas Priest.
John e Yoko c#g#ndo de mãos dadas
Como “Unleashed in the East” fora mixado lá, o Judas Priest gravou “British Steel” no Startling Studios, em Tittenhurst Park, Ascot. A propriedade de 280 mil metros quadrados, com um lago de pesca, uma capela e chalés, pertencia anteriormente a John Lennon, mas agora era de outro Beatle, Ringo Starr. Havia referências aos Fab Four por toda parte, até mesmo no porão, onde Ian encontrou pilhas de fitas máster de clássicos do grupo, além de singles de ouro, discos de ouro e todo tipo de memorabília imaginável.
Independentemente desse apelo, para K.K. Downing, Tittenhurst era genuinamente um excelente lugar para gravar um álbum. Ele explica na autobiografia “Heavy Duty” (Estética Torta, 2021):
“A casa, com sua forma e divisão dos cômodos, oferecia um espaço incrível para criar sons. Desde o início, ficamos mimados com o excesso de opções. De cara, decidi que gravaria minhas guitarras na biblioteca, porque ela tinha piso e paredes revestidos de madeira, o que era perfeito para obter os melhores timbres de guitarra. (…) A madeira nunca deixa o som áspero e, ao mesmo tempo, proporciona uma ressonância incrível. Todos os guitarristas adoram esse tipo de ambiente.”
Inspirado por John Bonham, que fez algo semelhante ao gravar a bateria de “When the Levee Breaks”, do Led Zeppelin, em Headley Grange, o produtor Tom Allom decidiu registrar a bateria de Dave Holland no hall de entrada, ao pé da escada, posicionando os microfones estrategicamente para obter um som poderoso e reverberante. Já Glenn Tipton optou pela mesma sala de estar onde John Lennon tocou piano no clipe de “Imagine”, no qual também se vê Yoko Ono abrindo as persianas do cômodo.
Em “Confesso”, Rob Halford recorda o banheiro anexo à suíte do casal, que chamou de “o pulo do gato” da mansão:
“Havia dois vasos sanitários, a pouco mais de um metro de distância um do outro, com placas na parede acima de cada um: JOHN e YOKO. Tentei imaginá-los sentados lado a lado, c#g#ndo de mãos dadas. Realmente, às vezes, o amor desconhece limites.”
Quanto à gravação de seus vocais, Rob, à época um homossexual não assumido publicamente, relembra, aos risos, que fez a maior parte dos registros dentro de um armário de vassouras:
“Tenho que admitir que não pude deixar de notar certa ironia ao cantar dentro de um armário!”
Uma bandeja cheia de talheres e um taco de sinuca
“British Steel” foi o álbum do Judas Priest que trouxe K.K. Downing, Glenn Tipton e Rob Halford compondo juntos como equipe pela primeira vez, “o que foi um salto e tanto”, segundo o vocalista. Cientes do que acontecia musicalmente ao seu redor, os três compuseram, logo no início do processo, uma música com uma sonoridade bem punk: “Breaking the Law”.
Ao escrever a letra, Halford tentou se colocar na mente de um jovem desempregado prestes a perder a sanidade. Apolítico por natureza, ele afirma que sua intenção não era se posicionar como algum tipo de porta-voz — “coisa que nunca fui” —, mas, ao ver o desemprego disparar durante o governo Thatcher na Inglaterra, sentiu a necessidade de documentar e refletir sobre o tema.
Como samplings ainda não existiam, não havia alternativa a não ser abordar os sons de maneira orgânica. Em “The Top 500 Heavy Metal Albums of All Time (ECW Press, 2004) K.K. relembra ao autor Martin Popoff que, durante a gravação de “Breaking the Law”, várias garrafas de leite e cerveja foram quebradas.
“Você não consegue realmente replicar o som de vidro se espatifando, então simplesmente posicionamos o microfone e… smash! (…) Foi uma verdadeira loucura.”
Outro exemplo de comentário social — ainda que não pareça à primeira audição — foi “Grinder”. Rob explica:
“A letra fala sobre como as pessoas são enganadas, usadas como marionetes, alimentadas pela máquina do capitalismo e depois descartadas como lixo.”
Para “Metal Gods”, a inspiração veio do trabalho de uma banda britânica contemporânea ao Priest. O vocalista conta:
“Foi o robô gigante da capa do álbum ‘News of the World’ (1977), do Queen, além do filme ‘Guerra dos Mundos’ e da ficção científica, que eu ainda devorava. A música fala sobre monstros de metal que obliteram a humanidade. Quem diria que dela surgiria meu apelido [‘Metal God’]?”
“Metal Gods” também foi um campo de experimentações sonoras, com efeitos especiais inusitados. Downing revela:
“Tom sugeriu que alguém pegasse uma bandeja cheia de talheres em uma gaveta da cozinha e a sacudisse em um momento específico para imitar o som de passos pesados e pré-históricos. Para a mesma música, usamos um taco de sinuca para criar o efeito de um chicote. Foi tudo muito divertido na época.”
Divertido e, de certa forma, rápido, como evidenciam os processos que resultaram em “Rapid Fire” e no hit “Living After Midnight”. Sobre a primeira, K.K. comenta:
“Quando a compusemos [muito rapidamente], não tínhamos a intenção de que fosse a faixa de abertura. Embora alguns dos melhores álbuns do Priest comecem com uma música acelerada para fazer o sangue dos fãs ferver, só tomamos essa decisão depois de analisar o conjunto da obra e avaliar os prós e contras de cada faixa sob uma perspectiva de sequência. Só então concluímos: ‘Quer saber? Essa aqui é uma forte candidata para abrir o disco…’.”
A segunda teve origem em uma noite fatídica, às quatro da manhã, quando Rob tentava dormir enquanto Glenn, com o amplificador ligado, brincava com um riff na sala de estar. O vocalista suspirou, vestiu seu robe e desceu para ter uma palavrinha com ele.
“‘Que porra é essa, Glenn?’, questionei. ‘Ah, perdão, te acordei?’ ‘Sim! Estou tentando dormir!’ ‘Vou abaixar o volume’, respondeu ele enquanto mexia no ampli. Ao me virar para subir, alfinetei com um golpe final: ‘Você está é vivendo depois da meia-noite aqui embaixo, isso sim!’. Parei em seco. Abrimos sorrisos largos um para o outro. ‘Isso é um puta título para essa música!’, disse Glenn. No dia seguinte, escrevi a letra, que fala de cair na farra e se divertir. Tom pegou o clima logo de cara, e a faixa estava prontinha antes do chá das cinco.”
Completam o repertório de “British Steel” o hino de resistência “United”, “You Don’t Have to Be Old to Be Wise”, “The Rage” — desenvolvida a partir de um riff de baixo funkeado de Ian Hill — e “Steeler”.
Tão durões, que nem sangram
Por mais marcantes que as músicas fossem, a icônica arte da capa de “British Steel” foi igualmente importante para a concretização da jornada turbulenta de autodescoberta iniciada pelo Judas Priest em “Rocka Rolla” (1974). Quando viu a proposta de Roslaw Szaybo — responsável pela arte dos álbuns “Stained Class” e “Killing Machine” —, K.K. Downing pensou: “É isso.”
“De certa forma, com sua referência clara a uma marca instantaneamente reconhecível [Gillette], como a capa do ‘Rocka Rolla’ [que faz referência à Coca-Cola], a capa de Szaybo não apenas criou algo, mas também serviu para perpetuar um tema do passado muito reconhecível. Assim, ‘British Steel’ faz uma referência atrevida ao ‘Rocka Rolla’, a qual eu acho que todos os nossos fãs não só entenderam como apreciaram.”
A primeira versão da capa trazia a lâmina de barbear cortando levemente os dedos. Quando a banda viu, vetou de imediato. Por mais que gostassem, simplesmente não valia o risco de bater de frente com a CBS Records, gravadora que já havia censurado o “violento” título “Killing Machine” para lançamento nos Estados Unidos, onde saiu como “Hell Bent for Leather”.
Em “Confesso”, Rob Halford dá outra explicação para a ausência do sangue:
“Achamos que ficaria mais durão sem o sangue. ‘Somos uma banda de heavy metal! Somos tão durões, que nem sangramos!’.”
No entanto, a versão americana de “British Steel” ainda assim teria sua particularidade, com “Breaking the Law” abrindo o disco no lugar de “Rapid Fire”, que foi empurrada para a faixa 2.
A gênese de tudo
Ao deixar Tittenhurst Park, o Judas Priest não poderia estar mais orgulhoso de seu novo “bebê”, que chegaria às lojas em 14 de abril de 1980. “British Steel” foi recebido com as melhores críticas que a banda tivera até então.
Na semana de lançamento, disparou na parada de álbuns, chegando à quarta posição no Reino Unido. Nos Estados Unidos, atingiu seu ápice ao alcançar o número 34 da Billboard.
Isso abriu portas para a nova experiência de gravar videoclipes, começando com “Living After Midnight”, seguido por “Breaking the Law” — no qual Rob Halford e cia. roubam um banco armados com nada além de suas guitarras e, segundo ele, do “poder do metal”. Ambos os clipes foram dirigidos por Julien Temple, que acabara de trabalhar no longa-metragem “The Great Rock ‘N’ Roll Swindle”, dos Sex Pistols.
Iniciada na Alemanha em 13 de abril, a turnê de “British Steel” manteve o Judas na estrada por quatro meses, com shows de abertura do (e uma série de atritos com o) Iron Maiden e 43 das 56 datas do giro realizadas somente nos EUA.
Olhando em retrospecto, Halford exalta a rapidez e a qualidade com que “British Steel” foi produzido:
“Compusemos, gravamos, produzimos, mixamos e masterizamos ‘British Steel’ em menos de trinta dias! Foi uma performance estupenda e, mesmo assim, não parecia apressada. Levou exatamente o tempo necessário para ser concluída.”
Já K.K. Downing soa um tanto incoerente em sua análise, na qual afirma:
“No fim das contas, vi ‘British Steel’ como um disco que quase não tinha falhas. Se estou sendo hipercrítico, diria que, por mais fantástico que ele pareça, ele ainda não captura todos os aspectos de como essas gravações foram fantásticas. O que ficou faltando? Não faço ideia. Tudo o que sei é que as músicas que fizemos soavam incríveis quando estávamos gravando.”
Para o guitarrista, porém, “British Steel” tem outro mérito. Ele explica:
“Havia algo radicalmente diferente não só sobre quem nos tornamos de 1980 em diante, mas também sobre como nos sentíamos em relação ao visual (…) Enquanto estávamos em turnê em 1980 promovendo ‘British Steel’, eu queria que o público nos olhasse lá em cima [do palco] e pensasse: ‘Esse é o Judas Priest’, da mesma forma que alguém vê um soldado usando camuflagem e conclui: ‘Ele é do Exército’ (…) Em 1980, tínhamos conseguido — e então outras bandas seguiram nossos passos, a ponto de o visual de couro preto com rebites se tornar não apenas sinônimo do Judas Priest, mas do heavy metal em geral. Eu não queria que o heavy metal fosse apenas uma espécie de religião, mas também queria adicionar um código de vestimenta apropriado aos dogmas dessa religião (…) ‘British Steel’ e 1980 foram a gênese de tudo, e isso foi extremamente gratificante na época.”
Judas Priest – “British Steel”
- Lançado em 14 de abril de 1980 pela CBS Records
- Produzido por Tom Allom
Faixas:
- Rapid Fire
- Metal Gods
- Breaking the Law
- Grinder
- United
- You Don’t Have to Be Old to Be Wise
- Living After Midnight
- The Rage
- Steeler
Músicos:
- Rob Halford – vocais
- Glenn Tipton – guitarra
- K.K. Downing – guitarra
- Ian Hill – baixo
- Dave Holland – bateria
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Não tenho o que comentar, só elogiar. Este disco de 1980, juntamente com os sucessores Screaming for Vengeance (1982) e Defenders of the Faith (1984), representa a minha fase preferida do Judas Priest: o heavy metal tradicional mais puro, simples e direto como tem que ser sempre feito e apreciado por todos. Foi o primeiro que eu conheci da banda até conhecer vários outros trabalhos que vieram antes e depois de British Steel (como por exemplo o Painkiller – de 1990), e defini-los como a minha banda favorita do gênero. Enfim, British Steel é um dos mais verdadeiros e clássicos álbuns do heavy metal em todos os tempos!