A década de 1970 foi marcada por um crescimento generalizado do interesse pelo esoterismo. Durante o período mais duro da ditadura militar, hoje conhecido como “anos de chumbo”, vários livros com apelos místicos tornaram-se best-sellers no Brasil, como “O Despertar dos Mágicos” (1960), dos estudiosos franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier, e “A Erva do Diabo” (1968), no qual o escritor e antropólogo hispano-americano Carlos Castaneda relata suas experiências sob o efeito da mescalina.
Na música, Raul Seixas e seu parceiro, o hoje escritor Paulo Coelho, criaram a Sociedade Alternativa, misturando lisergismo e anarquia com os ensinamentos do ocultista britânico Aleister Crowley. Elba Ramalho se dedicou ao estudo de seres extraterrestres.
Já Tim Maia tomou um caminho diferente. Lendo os livros da Cultura Racional.
A descoberta da Cultura Racional
Em 1974, no auge de sua fama e vivendo um momento familiar inédito — casado com Geisa e prestes a ser pai de seu único herdeiro, Carmelo —, Tim Maia foi contratado a peso de ouro pela gravadora RCA Victor para gravar um álbum duplo. No entanto, quando boa parte das bases já estava registrada, ele simplesmente desapareceu.
Algumas semanas depois, o cantor fez uma visita surpresa ao estúdio. Mas algo havia mudado.
Na casa do músico Tibério Gaspar, Tim, até então ateu praticante, descobriu os livros da série “Universo em Desencanto” e, num repentino surto religioso, aderiu à Cultura Racional, uma excêntrica seita esotérica da Baixada Fluminense. Após ser submetido a um ritual de “desmagnetização”, recebeu uma camisa e uma calça brancas e passou a viver na sede do culto, em Belford Roxo.
O conjunto de livros “Universo em Desencanto” é composto por nada menos que 1.006 volumes, escritos/psicografados ao longo de seis décadas (de 1935 a 1990) pelo criador do movimento, Manoel Jacintho Coelho (1903-1991), o chamado Racional Superior.
Em resumo, a doutrina afirma que a humanidade tem origem em um mundo superior, o Mundo Racional, e que a vida na Terra é uma forma degenerada dessa existência. O objetivo final seria retornar a esse estado primordial, alcançando a “Imunização Racional” por meio da leitura dos livros e prática dos ensinamentos.
Após distribuir exemplares do livro aos músicos e técnicos do estúdio, Tim anunciou que não mais faria letras sobre sexo, drogas e amores. A partir daquele momento, sua música seria exclusivamente devocional. Como Nelson Motta, biógrafo de Tim, descreve no documentário “Por Toda Minha Vida” (2007):
“Ele estava animado, acreditando que ia na janelinha do disco voador para o planeta de origem. Ele deu tudo. Pegou os móveis da casa dele, o fogão, a geladeira, tudo. Ele deu tudo.”
Mudanças de hábitos e imposições ao grupo
Sob certos aspectos, a conversão fez bem a Tim. Ele abandonou as drogas e o álcool — passando a combatê-los com veemência —, adotou uma dieta rigorosa que o fez perder peso e exibia uma aparência mais saudável. Nelson Motta relata na biografia “Vale Tudo” (Editora Objetiva, 2006) que os reflexos em sua voz foram imediatos:
“Um fôlego e uma potência, uma clareza e uma riqueza de timbres que saltavam aos ouvidos. Estava cantando como nunca.”
Os músicos, empolgados com a nova fase vocal de Tim e com a qualidade das músicas e arranjos, pouco se importavam com as letras. No entanto, para continuar tocando com ele, era necessário se converter à Cultura Racional, participar das leituras do livro em Belford Roxo, vestir-se de branco e abster-se de cigarro, álcool, drogas e carne vermelha. O sexo era permitido apenas para procriação. Quem não aceitasse, estava fora.
O grupo foi rebatizado como Banda Seroma Racional. O músico Serginho Trombone relembra:
“Ficamos uns malucos diferentes. Ninguém bebia, ninguém fumava, ninguém cheirava, ninguém fazia mais nada.”
A obsessão de Tim chegou ao ponto de vestir seu filho Carmelo apenas com roupas brancas e jogar fora os brinquedos do enteado, Leo Maia, que considerava “coisa do diabo”. Hyldon, coautor de “Primavera” — um dos carros-chefes do repertório romântico de Maia — lembra que o amigo ficou insuportável:
“P#rra, ninguém podia ir à casa dele com roupa que não fosse branca!”
O disco da doutrina
O vindouro álbum, finalizado em agosto de 1974, serviria como instrumento de difusão da doutrina Racional, mencionada em todas as suas faixas. Paulinho Guitarra relembra que ele e os colegas acharam tudo o maior barato:
“(…) que a humanidade veio de uma Planície Racional que derreteu, aí foi descendo e foi formando o sol, estrelas, a gente, ‘pô, que loucura, né?’ A gente era, pô, maluco, como todo mundo na época, vivia aquela vida legal, com visual maneiro. Anos 1970, né? Anos 1970…”
Quem não gostou nada da nova fase de Tim foi a RCA Victor. Não demorou muito até que os executivos da gravadora percebessem o risco que seria associar-se a uma seita excêntrica em plena ditadura militar. Além disso, o delírio espiritual do cantor comprometia o potencial comercial do disco duplo, e a gravadora optou por desistir do projeto.
Tim, então, comprou as fitas já gravadas e os direitos sobre a obra. Como nenhuma outra gravadora quis bancar o lançamento, ele decidiu disponibilizar o material por conta própria. Com o aporte financeiro de Manoel Jacintho, nasceu a Seroma Discos, o primeiro selo independente brasileiro de porte.
Fracasso comercial e vendas inusitadas
Quando os discos chegaram à imprensa e às emissoras de rádio, ninguém entendeu nada. Lançados pela Seroma em 1975, “Tim Maia Racional Vol. 1” e “Vol. 2” foram ignorados pela crítica e pelo público. “Imunização Racional (Que Beleza)” ainda tocou em algumas rádios do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas, fora isso, foi um fiasco total.
Do ponto de vista musical, a nova fé trouxe resultados ambíguos. As melodias eram sofisticadas, a voz e a interpretação de Tim atingiram um nível altíssimo. Por outro lado, as letras, na maioria das vezes, eram apenas exaltações confusas e pouco convincentes dos ensinamentos da seita. Na prática, eram quase incompreensíveis. O contraste entre a musicalidade extraordinária e o proselitismo excessivo tornava a experiência única — e estranha.
Sem o suporte de uma gravadora para distribuí-los, os álbuns eram vendidos de maneira quase patética: nos shows, em bailes, nos semáforos e até de porta em porta pelo próprio Tim e pelos integrantes da banda. Poucas lojas aceitaram ficar com o disco — e, mesmo assim, apenas em consignação.
Os shows, sem os sucessos que o público amava, tornaram-se verdadeiras pregações da Cultura Racional. Atraíram quase exclusivamente devotos da seita.
Uma grande oportunidade para divulgar o material e, quem sabe, reverter a situação, surgiu com o convite para participar do Festival Abertura, da TV Globo. Convidado pelo diretor Augusto César Vanucci para se apresentar na primeira eliminatória, Tim compareceu com a Caravana Racional e seus instrumentos pintados de branco.
O choque foi imediato. Além da música, os figurinos causaram estranheza — tanto branco fazia a imagem estourar no vídeo. Vanucci pediu que trocassem as roupas e a música. Tim reagiu com fúria irracional: gritou, xingou, brigou com os seguranças e acabou banido da TV Globo — algo que se repetiria no futuro.
O rompimento com a seita
A conversão que parecia definitiva revelou-se apenas mais uma das muitas fases de Tim Maia. Em 1976, sem gravadora, sem dinheiro e sem conseguir vender discos ou fazer shows, o cantor desiludiu-se com a seita e a abandonou. Em seguida, convocou a imprensa para denunciar o ex-guru, acusando-o de enganá-lo e roubá-lo:
“Logo vi que o negócio dele era umbanda e baixo espiritismo. Esse Manoel Jacintho não me engana, ele passou 15 anos treinando com o bruxo Seu Sete da Lira e era dono de uma propriedade enorme em Nova Iguaçu, que tinha até motel para extraterrenos. Ele tomava guiné-tatu, uma raiz que deixa a pessoa querendo sexo três dias sem parar. Pode ter até 90 anos que a bandeira levanta! Ele era o rei da guiné-tatu e comia todas as garotinhas, botou uma ovelha em cada casa. E ainda dizia que mulher magnetizava!”
Segundo a ex-chacrete Marlene Morbeck, em depoimento presente no especial “Por Toda Minha Vida”, Tim também “descobriu que o tal pastor estava comprando muitos terrenos na Barra da Tijuca às custas do nome dele”.
Depois de recolher e destruir as cópias não vendidas dos LPs Racional, Tim voltou com tudo à sua vida de excessos. Do ponto de vista da carreira, porém, teve que recomeçar praticamente do zero.
O fim do casamento e a retomada da loucura
O fim da fase religiosa também marcou o fim de seu casamento. Segundo seu filho Carmelo Maia, a mãe “não aguentou o rojão”:
“Porque meu pai fazia aquela coisa do triatlo, né? Que era fumar, cheirar, beber… Ela não aguentava, de fato, o esquema com ele. E ela era muito novinha, então acabou me deixando com ele, e foi embora com o meu irmão, Leo.”
Tim, novamente ateu praticante, passou a rejeitar qualquer tipo de experiência religiosa. Ele dizia:
“Acho que [qualquer experiência religiosa] é prejudicial ao ser humano. Agora, qualquer experiência de extravaso é benéfica.”
Redescoberta e consagração
Filosofias à parte, os discos “Tim Maia Racional” tiveram sua importância musical reconhecida apenas muitos anos depois.
Por volta de 1998, na época da morte de Tim, o interesse por esses álbuns começou a crescer. Como havia poucas cópias em circulação, os LPs passaram a ser itens raros e caríssimos nos sebos. Além disso, o fato de conterem algumas das melhores músicas já gravadas pelo cantor só aumentou o culto em torno deles.
Carmelo Maia reforça que, hoje em dia, os discos são apreciados pelo seu valor musical, sem o peso da doutrina:
“Todo mundo escuta a musicalidade, o disco em si, os arranjos… A galera presta atenção nisso, esquecendo a Cultura Racional.”
Em 2011, “Tim Maia Racional Vol. 1” e “Vol. 2” foram finalmente relançados em CD como parte de uma coleção da Abril. Na mesma leva, surgiu também um “Vol. 3”, exclusivo para colecionadores, contendo faixas inéditas. Segundo a lenda, Tim não teria pagado a gravação, e o dono do estúdio guardou as fitas por mais de três décadas.
Hoje, todas as músicas da fase Racional estão disponíveis nas plataformas de streaming, esperando para serem redescobertas. O segundo volume encontra-se temporariamente bloqueado no Spotify, mas pode ser acessado via YouTube.
Em matéria exibida no programa “Fantástico” quando do oitavo aniversário da morte de Tim, a cantora Sandra Sá resumiu a genialidade desse período:
“As pessoas falam que ele estava bem maluco. E não sabem a riqueza disso tudo.”
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