Menos de onze meses após tocarem na segunda tarde do Summer Breeze 2024, os italianos do Lacuna Coil voltaram ao Brasil para uma série de quatro datas: São Paulo, em um Carioca Club esgotado no último sábado (15); Curitiba, no Tork n’ Roll na noite seguinte (16); Belo Horizonte, no Mister Rock, foco desta resenha, na terça-feira (18); e Brasília, na Toinha Brasil Show, um dia após passagem pela capital mineira (19). Adotando tática similar à do festival do ano passado, foram apenas tocando música atrás de música — sem abdicar de interagir com os fãs — e deixando o tempo correr a favor deles.
Exatamente às 21h, conforme divulgado, e sem banda de abertura, disparou-se uma intro sem nome marcando as entradas de Richard Meiz (bateria), Marco Coti Zelatti (baixo), Daniele Salomone (guitarra), nesta ordem, deixando a dupla de vocalistas Cristina Scabbia e Andrea Ferro por último, como não poderia deixar de ser. De modo geral, confiando nos dados disponíveis no site Setlist.fm em relação às outras cidades, houve apenas uma troca sutil: “Heaven’s a Lie” foi realocada para após “Oxygen”, em vez de preceder “Blood, Tears, Dust”. Porém, vamos com calma e tudo em seu devido… tempo.
Aposta na força das músicas
Há 31 anos na estrada, desde os idos de Sleep of Right e já contendo Andrea e Marco no lineup, o Lacuna Coil gradativamente se transformou e adicionou ao seu som gótico flertes com o nu metal, sempre angariando mais e mais fãs, como os que tomavam camarotes e pista da casa. E, coincidentemente, como se soubessem que o mote deste texto seria o tempo, vieram a mil por hora com “Layers of Time” efetivamente abrindo os trabalhos, pesadíssima e autêntico pé na porta sucedido por “Reckless”, justamente sua antecessora no álbum “Black Anima” (2019).
Olhando para o palco, via-se um total de zero decorações. A aposta ocorria exclusivamente na força das músicas — no máximo apoiando-se também em maquiagem e figurino típicos. Primeira tocada do mais novo trabalho, recém-disponibilizado em 14 de fevereiro, “Hosting the Shadow” caiu super bem. No total seriam seis novas e, se no disco “Sleepless Empire” há a participação especial de Randy Blythe, ao vivo Andrea assumiu maior protagonismo, competentemente emulando as linhas do frontman do Lamb of God.
Oficialmente de “Comalies” (2002), a versão tocada de “Tight Rope” foi a de “Comalies XX” (2022), play com roupagem mais visceral do que as canções originais e mais próximas de como o grupo as executa atualmente. E voltando dez anos no tempo, a ótima “Kill the Light” representou “Dark Adrenaline” (2012). Não seria a única, pois, duas músicas adiante, seria a vez de “Trip the Darkness”. Entre elas, uma campeã de audiência na cantoria coletiva: “Our Truth”, com Cristina magistralmente conduzindo o coro por duas vezes e Andrea com absoluto controle da plateia pedindo palmas em seu final.
Para que administrar energia?
A esta altura, o público estava totalmente nas mãos do Lacuna Coil. Uma possível leitura da estratégia inicial da banda era a de empilhar o máximo possível de músicas, para, quem sabe posteriormente, tirarem um pouco o pé do acelerador e administrarem tempo, energia, performance e até o cansaço. Por que não? Afinal de contas, descontada a intro para melhor ilustrar o ponto, eram sete cacetadas em 26 minutos e apenas uma interação mais elaborada nos intervalos.
Será? A seu modo, “Apocalypse” desacelerou um pouco o andamento da festa, para “Now or Never” tornar a mandar tudo pelos ares. Nada de administrar energia. Chegou, então, a hora de “In the Mean Time” (trocadilho intencional para com “In the Meantime”), no álbum novo com Ash Costello (New Years Day) como convidada. A faixa, vale lembrar, foi tocada em primeiríssima mão no citado festival no Memorial da América Latina no ano passado.
“Enjoy the Silence” foi o único cover no set, reempacotado com cara e estampa do Lacuna Coil, mais soturna e pesada do que a original do Depeche Mode, sem descaracterizá-la e, ao seu término, Zelatti rapidamente pediu a palavra no para enaltecer o talento de Scabbia. Nada mais justo, pois ela lembra a eterna metáfora do vinho e parece apenas melhorar com o passar dos anos, ciente do potencial de sua voz e de sua representatividade.
E é fato: Cristina permanece como uma força da natureza. Transborda carisma, talento e presença de palco e continua a entregar o que dela se espera como uma das mais completas frontwomen do metal contemporâneo. Andrea é o contraponto vocal de perfeito encaixe, fechando o combo de “bela e fera”, tão famoso e experimentando desde o surgimento do metal sinfônico. Só não deve ser confortável estar em sua pele, uma vez que sua parceira magnetiza olhares e praticamente 100% dos gritos são a ela direcionados.
Parte final
Outra um tantinho mais lenta, “Entwined XX” apresentou um lindo solo de guitarra do ainda novato Daniele, seguida da pedrada “Blood, Tears, Dust” e de “Oxygen”. Superando uma hora no relógio, “Heaven’s a Lie XX”, por sua vez, despertou uma reflexão na cabeça deste repórter: como deve ser para uma cantora nascida no país mais católico do mundo interpretar sua letra e anunciá-la como “Sabemos que o paraíso é uma mentira”? Dá para imaginar o tamanho da encrenca?
Caminhando para a conclusão da parte regular do set, mandaram “I Wish You Were Dead”, abaixo de três minutos de duração e mais curta do repertório, e “Veneficium”, dificílima nos agudos até mesmo para Cristina, mas ela deu conta e foi efusivamente aplaudida com a faixa ainda rolando. Enquanto os cinco se despediam, olhávamos em volta para verificar não somente a óbvia presença feminina, mas também a renovação de público — sim, não era raro vermos rostos na casa dos vinte e poucos anos.
Voltando para o bis, surgiu uma nova intro e a retomada, de fato, se deu por duas consecutivas de “Sleepless Empire”: “Never Dawn”, e nela foi curioso notar o efeito provocado por um simples “Run” no começo, dando a ela um ar de trilha sonora de filme de terror; e “Gravity”. Houve tempo e espaço para as duas derradeiras: “Swamped XX” e “Nothing Stands in Our Way”. Como “outro”, “Love You to Death” serviu como homenagem ao saudoso Peter Steele e seu Type O Negative.
Corrido, né?
Resenhar assim o show, de modo “corrido” e cronológico, faz tudo parecer prático demais. Todavia, a proposta reforça inteiramente as decisões tomadas pelo Lacuna Coil ao simplificar a noite via intervalos curtos, sem se arriscar ou atropelar o andamento do espetáculo, comunicando-se com precisão e já emendando a próxima, e a próxima e a próxima, sem deixar a peteca cair.
No total, conforme afirmado, foram seis de “Sleepless Empire”, mas estranhamente deixaram fora o petardo de abertura “The Siege” e aí ficou a dúvida: se ela é forte o suficiente para inaugurar o disco, não faria sentido ser incluída ao vivo? Ficou um pouco mais estranho se levarmos em conta que outras “faixas um” foram selecionadas: “Trip the Darkness” abre “Dark Adrenaline”; “Swamped XX” inaugura “Comalies XX”, bem como fizera anteriormente em “Comalies”; e “Nothing Stands in Our Way” puxa “Broken Crown Halo” (2014).
Particularmente para o gosto deste escriba, também faltou “In Nomine Patris”, outra grande composição do mais recente disco. Se você aprecia o material recente, ainda rolaram mais cinco de “Black Anima” e quatro novas roupagens de composições mais antigas relançadas em “Comalies XX”. Desta forma, 15 das 21 foram de material lançado ou regravado de 2019 em diante.
Por outro lado, o cobertor ficou curto e escolheram tocar apenas uma dos ótimos “Broken Crown Halo” e “Delirium” (2016), respectivamente: a saideira “Nothing Stands in Our Way”, perfeito hino de despedida; e a pesadíssima “Blood, Tears, Dust” — forçando o grupo, por exemplo, a deixar de lado uma pérola como “Downfall”, com belo solo de guitarra de Myles Kennedy (Alter Bridge / Slash).
Também faltou “End of Time”? Não, não, pura brincadeira com o tema e você deve ter pensado: “Ah, dá um tempo!”. Falando sério agora? Ninguém pareceu ter sentido a ausência de algo e não havia motivo para tal na segunda passagem dos italianos por Belo Horizonte em performance enérgica, sintética e, vamos dizer no português claro, absolutamente direta e sem enrolação.
Lacuna Coil — ao vivo em Belo Horizonte
- Local: Mister Rock
- Data: 18 de março de 2025
- Turnê: Sleepless Empire
- Produção: Overload
Repertório:
1. Layers of Time
2. Reckless
3. Hosting the Shadow
4. Tight Rope XX
5. Kill the Light
6. Our Truth
7. Trip the Darkness
8. Apocalypse
9. Now or Never
10. In the Mean Time
11. Enjoy the Silence [Depeche Mode]
12. Entwined XX
13. Blood, Tears, Dust
14. Oxygen
15. Heaven’s a Lie XX
16. I Wish You Were Dead
17. Veneficium
Bis:
18. Never Dawn
19. Gravity
20. Swamped XX
21. Nothing Stands in Our Way
Outro: Love You to Death [Type O Negative]
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