“Nicko, o show é seu. Este é seu palco, esta é sua noite, use o tempo que quiser”, foram as últimas palavras de Bruce Dickinson em um Allianz Parque lotado no último sábado (7). A derradeira noite da turnê “The Future Past” ganhou novo significado quando, ao amanhecer do mesmo dia, as redes sociais da banda publicaram que a segunda apresentação do Iron Maiden em São Paulo seria a despedida do Nicko McBrain (leia resenha da primeira aqui)
Após ser abraçado por cada um de seus companheiros, o baterista, a ser substituído por Simon Dawson — membro do British Lion e ex-The Outfield —, deixou o cenário montado no estádio com um sorriso estampado no rosto. Enquanto jogava todas as suas baquetas e munhequeiras, era ovacionado por um público ávido por ter algo de recordação dessa data histórica.
Emocionado, o músico não chegou a fazer qualquer discurso de despedida para a plateia. Talvez para evitar uma exposição sentimental que nunca combinou com seu jeito mais cômico. Ou porque dificilmente seria compreendido por um público não anglófono, como sabe quem já perdeu horas tentando decifrar a série “Listen with Nicko!”, com seus comentários presentes ao final dos singles que compuseram o box-set “The First Ten Years” (1990).
O anúncio foi inesperado, mas não surpreendente. A turnê “The Future Past” começou no final de maio de 2023 com algumas críticas à atuação do baterista, que acabou indo a público em agosto daquele ano explicar ter sofrido um AVC poucos meses antes, em janeiro. O músico ficou paralisado do lado direito do ombro para baixo e precisou de dez semanas de fisioterapia intensiva para estar apto a se apresentar com o Maiden.
Pode ter sido coincidência, mas o lugar da despedida de McBrain foi simbólico desta relação de amor que o Iron Maiden tem com o Brasil. Primeiro destino do grupo na América Latina com sua apresentação na edição inaugural do Rock in Rio 1985, desde então o país tem sido um porto seguro para os comandados por Steve Harris.
Enquanto definhava em popularidade nos mercados do hemisfério norte nos anos 90, sob a voz de Blaze Bayley, a banda enchia de fãs o estádio do Pacaembu em São Paulo, a cidade com maior número de ouvintes de Iron Maiden no mundo pelo Spotify. Por mais que os demais países da América Latina também demonstrem atualmente um amor incondicional pelo grupo, um show histórico como esse não merecia acontecer um outro lugar.
Volbeat
Antes do Iron Maiden, porém, houve o show do Volbeat. O grupo dinamarquês veio como convidado especial exclusivamente para as duas datas paulistanas na América do Sul, apresentando-se pela primeira vez no Brasil para um público majoritariamente de fãs de música pesada — antes, havia sido parte do elenco da edição do Lollapalooza de 2018, tocando à tarde em uma sexta-feira, dia útil.
Se foi um investimento no futuro trazer um grupo do porte do Volbeat apenas para os shows do Brasil, não fez sentido algum que não fosse transmitido pelos telões em um estádio lotado na véspera. Erro devidamente corrigido neste sábado, com diferenças pontuais em relação ao do dia anterior.
A começar pela camiseta vestida pelo vocalista e guitarrista Michael Poulsen — a estampa de um clássico do Sepultura deu lugar a uma do Cavalera com o logo estilizado da ex-banda. No repertório, apenas uma alteração, a inclusão da pesada “Dead But Rising” no lugar de “Shotgun Blues”. Por quase uma hora, o grupo expôs sua sonoridade que bota num caldeirão o que há de mais comercial no Metallica, boogie rock e um country meio western.
Por mais cativante que a mistura soasse em alguns momentos, como na dançante “Wait a Minute My Girl”, as melhores respostas de público vieram quando a sonoridade se aproximava dos gigantes metálicos. A quase country “Sad Man’s Tongue” pareceu citar o instrumental da parte dos clássicos coros de “Creeping Death”, ou pelo menos fez algumas pessoas puxarem aquela cantoria. “Seal the Deal” não ficaria deslocada em “Load” e teve o guitarrista Flemming C. Lund pisando no wah-wah como se fosse Kirk Hammett.
A cada pedido para “trazer o barulho”, numa referência clara à canção do Public Enemy que virou um clássico do crossover entre rap e thrash metal na colaboração com o Anthrax, Poulsen foi ganhando mais público. Depois de soar mais agressivo com “The Devil Rages On” e apelar pelas luzes de celulares na radiofônica “For Evigt”, todo o esforço talvez não tenha sido suficiente para, quando a pegajosa “Still Counting” encerrou o repertório, ter dado à banda dinamarquesa o tamanho e respeito que já conquistou na Europa.
Todavia, foi um passo nessa direção. Uma apresentação solo já demorou demais para acontecer para consolidar seu público no país.
Repertório — Volbeat:
Intro pré-gravada: Born to Raise Hell (Motörhead)
1. The Devil’s Bleeding Crown
2. Lola Montez
3. Sad Man’s Tongue
4. A Warrior’s Call
5. Black Rose
6. Wait a Minute My Girl
7. Dead But Rising
8. Fallen
9. Seal the Deal
10. The Devil Rages On
11. For Evigt
12. Still Counting
Gravação: “Trust Me” (Brad Fidel)
Iron Maiden
O Iron Maiden sempre funcionou por seu próprio método. Desde que a Nova Onda do Metal Britânico (NWOBHM) arrefeceu em meados dos anos 80, a banda de Steve Harris se isolou num mundo à parte. Enquanto o mainstream caminhava para o hard rock festeiro ou o thrash metal agressivo, o grupo inglês experimentava com sintetizadores e seguia associando sua imagem a uma caveirinha icônica.
Quase quarenta anos depois, aquela capa cheia de detalhes finalmente ganhou vida de novo nas turnês do Iron Maiden. Foi a realização de um sonho para a imensa maioria dos fãs, que nunca pôde ver os shows da turnê de “Somewhere in Time” (1986), o disco de temática futurista lançado com a arte citada. Diferentemente de outros momentos históricos na carreira da banda, tal excursão não foi registrada oficialmente em vídeo.
Apesar de o grande apelo musical da turnê ter sido a estreia nos palcos da faixa final de “Somewhere in Time”, “Alexander the Great”, outra realização de sonho para 999 a cada mil fãs do Iron Maiden, é um equívoco tratar “The Future Past” como uma turnê nostálgica como algumas anteriores.
O conceito do repertório da agora encerrada excursão foi criativo: músicas de um disco nostálgico, mas então futurista, inspirado no filme “Blade Runner”, foram contrapostas às faixas do mais recente álbum do grupo. “Senjutsu” (2021) aborda assuntos históricos, de samurais japoneses ao extermínio do povo celta, passando por máquinas do tempo e temas bíblicos. É o Iron Maiden operando dentro de seu próprio universo.
E, dentro desse universo, nunca houve muito espaço para surpresas. Assim, mesmo com a carregada atmosfera emocional da despedida de um companheiro de 42 anos de banda, o show de sábado, de novo para um Allianz Parque lotado, em praticamente nada se diferenciou da apresentação da véspera. Repertório idêntico, os mesmos efeitos no palco e uma competente atuação dos músicos.
A procura pela precisão de Steve Harris e Adrian Smith na reprodução de suas partes no baixo e guitarra, respectivamente, ficaram contrapostas ao exagerado freestyle maníaco de Janick Gers e um atualmente desleixado Dave Murray, mas sempre com um sorriso contagiante em suas bochechas coradas.
Os olhos de todos estiveram direcionados a Nicko McBrain, como não poderia ser diferente. Logo após a dupla inicial da noite, “Caught Somewhere in Time” e “Stranger in a Strange Land” — ambas do disco de 1986 —, o elefante da sala foi abordado. Em sua primeira comunicação com o público, o vocalista Bruce Dickinson explicou que o baterista apenas deixaria de excursionar com o Iron Maiden, mas se manteria na banda. Mais um motivo para o Allianz Parque seguir gritando o nome do músico.
Não foi como se McBrain tivesse uma noite de superação digna de seu auge técnico, compreensível diante dos problemas que sofreu. O baterista manteve simplificados seus arranjos originalmente cavalgados de bumbo, bem como se mostrou mais econômico nas viradas. O andamento das músicas teve ligeira diferença, nada suficiente para incomodar a experiência dos tradicionalmente chatos fãs do Iron Maiden.
A empolgação seguiu em alta com “The Writing on the Wall”, a primeira de uma trinca emendada de “Senjutsu”, mas não se manteve assim nas duas próximas, “Days of Future Past” e “The Time Machine”. Bruce Dickinson, preciso no alcance vocal, não esteve tão falante nas interações com o público entre as músicas como na véspera.
O vocalista teve um discurso mais direto antes da longa “Death of the Celts”, outra do álbum mais recente, quando emulou todo o seu Ian Anderson interior na forma de cantar a introdução e na movimentação de palco.
Por mais que o Iron Maiden tente provar a qualidade de suas músicas recentes no palco para os fãs, clássicos serão sempre clássicos. A forma como o público acompanhou “The Prisoner”, de “The Number of the Beast” (1982), e “Can I Play with Madness”, de “Seventh Son a Seventh Son” (1988) deixou evidente a força do material oitentista do grupo, inclusive junto às inúmeras crianças presentes no Allianz Parque nos dois dias, nessa eterna renovação de fãs que mantém o grupo popular há décadas.
“Somewhere in Time” foi retomado com “Heaven Can Wait”, nessa turnê sem a tradicional turma de fãs atrás de Steve Harris para cantar os coros de sua parte intermediária, mas com uma batalha de tiros entre a caveirinha Eddie e Bruce Dickinson durante o solo. O momento mais esperado da noite, “Alexander the Great”, culminou com o vocalista ovacionado após segurar por mais de vinte segundos a última sílaba ao final da canção.
Após “Fear of the Dark” deixar o público ensandecido com cantorias intermináveis de sua melodia, os ânimos se mantiveram exaltados com a volta de Eddie, estilizado como samurai, para “Iron Maiden”. A música de mesmo nome da banda encerrou a porção regular do repertório. McBrain foi o último a deixar o palco, mais uma vez ovacionado.
“Hell on Earth”, outra longa canção do disco mais recente, só aqueceu o ambiente mesmo pelas rajadas de chamas que soltava na parte superior do palco. Com os clássicos “The Trooper” e “Wasted Years”, devidamente recebidas pelo público acompanhado suas letras e melodias aos gritos, Nicko McBrain encerrou sua participação como o baterista nos shows do Iron Maiden.
A banda prometeu o anúncio do substituto de McBrain para breve — e cumpriu a promessa ao já confirmar Simon Dawson. A agilidade era necessária, visto que o Iron Maiden já tem mais uma turnê agendada para 2025.
Batizada “Run for Your Lives”, a excursão celebrará os 50 anos de história do grupo, com um repertório compreendendo o período entre o disco de estreia homônimo de 1980 até “Fear of the Dark” (1992). Provavelmente, deve se estender até 2026 e, como prometido por Bruce Dickinson nas duas noites em São Paulo, retornar ao Brasil.
Se antes ela tinha ares de turnê de despedida, com um novo baterista, pode ser uma injeção de ânimo para garantir mais alguns anos de estrada ao Iron Maiden. Como ficou escancarado nas duas apresentações em São Paulo, não é como se faltasse fôlego para os outros cinco membros.
Iron Maiden — ao vivo em São Paulo
- Local: Allianz Parque
- Data: 7 de dezembro de 2024
- Turnê: The Future Past
- Produção: Move Concerts
Repertório:
Gravação: “Doctor Doctor” (UFO) + “Blade Runner” (“End Titles”, trilha sonora)
1. Caught Somewhere in Time
2. Stranger in a Strange Land
3. The Writing on the Wall
4. Days of Future Past
5. The Time Machine
6. The Prisoner
7. Death of the Celts
8. Can I Play With Madness
9. Heaven Can Wait
10. Alexander the Great
11. Fear of the Dark
12. Iron Maiden
Bis:
13. Hell on Earth
14. The Trooper
15. Wasted Years
Gravação: “Always Look on the Bright Side of Life” (Monty Python)
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