Como “Mellow Gold” e o hit “Loser” levaram Beck ao estrelato

Método do músico de recontextualizar o familiar numa forma irreconhecível pode ter suas origens traçadas à sua família artística

Beck Hansen é reconhecido por grande parte da indústria musical como um dos artistas mais influentes dos últimos 35 anos. Seja através de seu experimentalismo, combinando rock, funk, bossa nova, lo-fi, folk e blues, ou até mesmo pelos seus projetos mais tradicionais, o cantor e compositor americano vestiu quase tantas máscaras na carreira quanto David Bowie, mas mantendo sua imagem essencialmente a mesma.

Dito isso, quem é ele e como alguém assim chegou ao seu patamar? Bem, como anunciou em seu primeiro grande hit, Beck é um perdedor. Um moleque magrelo com apetite insaciável por músicas e as possibilidades dentro dela. Mais um da linhagem eterna do nerd no rock, cuja figura desconfortável esconde um poço de talento. Pense em Buddy Holly, Elvis Costello, Herbert Vianna.

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Vamos contar a história de “Mellow Gold”.

Arte no sangue

Para compreender a abordagem onívora do músico, vale simplesmente olhar para suas origens. Beck é filho da artista plástica Bibbe Hansen, uma figura cativa da lendária Factory de Andy Warhol. Seu pai, David Campbell, era um compositor orquestral que trabalhou com artistas como Jackson Browne, James Taylor e Carole King.

Entretanto, a figura cuja influência filosófica parece mais aparente no cantor e compositor é a de seu avô materno, Al Hansen. Ele era um integrante do coletivo avant-garde multimídia Fluxus durante os anos 1950 e 1960, sendo colega de nomes como John Cage, La Monte Young, Terry Riley e Yoko Ono.

Conversando com a Rolling Stone em 1997, Beck falou sobre uma experiência formativa de presenciar a arte do avô quando pequeno

“Ele era esse fenômeno estranho, sabe, que aparecia do nada. Eu lembro que ele veio ficar conosco quando eu tinha uns cinco anos de idade, e ele trouxe consigo sacos cheios de coisas quebradas, revistas, guimbas de cigarro, todo tipo de coisa jogada fora e materiais que usaria em suas peças de arte. Ele tinha alguns brinquedos antigos que haviam sido quebrados e não funcionam mais guardados em algum lugar. Ele encontrou um cavalo de balanço antigo, do tipo que dá pra encontrar num hipermercado, feito de plástico com molas nele. Ele me ofereceu cinco dólares por ele – o que pra mim era uma quantidade inimaginável de grana. Eu imediatamente disse sim, pode ficar. Mas eu não entendi o que ele faria com aquilo, que uso aquilo teria pra ele.

Então eu voltei da escola um dia e vi esse negócio do lado da nossa casa, vagamente familiar, mas ao mesmo tempo completamente irreconhecível. Ele tinha pego o cavalo e colado guimbas de cigarro por toda a superfície, cortado a cabeça fora e pintado tudo com tinta de spray prateada. Era uma monstruosidade metálica sem cabeça. Eu acho que estava interessado, mas algo dentro de mim se retraiu junto. Era – era tão cru: algo tão comum e esquecível transformado nessa entidade bizarra. 

Na época, era mais uma curiosidade pra mim. Mas em retrospecto, acho que coisas desse tipo me deram a ideia, talvez subconscientemente, de haverem possibilidades dentro das limitações do cotidiano, com as coisas vistas por nós como descartáveis. Nossas vidas podem parecer tão limitadas e chatas, mas essas coisas podem ser transformadas. Podemos nos proclamar a ser – sermos alquimistas, transformando m#rda em ouro. Então eu sempre carreguei isso comigo.”

Essa mentalidade serviu a Beck especialmente pelo fato de sua família nunca ter sido particularmente estável no quesito financeiro. Eles moravam em uma parte decadente de Hollywood durante a década de 1970, aos poucos demolida pela iniciativa privada para dar lugar aos excessos atuais. Quando seus pais se separaram, em 1980, o músico e sua mãe foram para um bairro salvadorenho perto de Koreatown cheio de refugiados da guerra brutal que afetou o país centro-americano.

Escola nunca foi o caminho pra Beck, que abandonou o Ensino Médio no primeiro ano por questões financeiras – sua família morava em um apartamento de um quarto e a necessidade de privacidade era maior que a de educação naquele momento. Ele exerceu uma série de trabalhos de salário mínimo pra se sustentar, enquanto tentou se matricular em uma escola de arte na cidade. Foi rejeitado. 

Sem dinheiro, ocupou seu tempo consumindo o máximo possível de cultura. Ia para clubes de jazz com o irmão, assistia aulas em uma faculdade comunitária usando uma identidade falsa que também lhe dava acesso à biblioteca da instituição. Além disso, começou a fazer apresentações musicais sozinho. Essas geralmente aconteciam em ônibus de Los Angeles, nos quais Beck tentava tocar blues raiz e era hostilizado pelos passageiros.

Também participava de projetos musicais mais tresloucados, que envolviam letras improvisadas, equipamento extremamente barato e uma tentativa de misturar folk com hip-hop. Rap havia sido o primeiro gênero contemporâneo a causar uma reação nele quando criança, principalmente o trabalho de Grandmaster Flash.

Nesse período, Beck começou a conhecer mais sobre a história do rock e dos movimentos de arte. Nisso, descobriu como sua família tinha uma ligação tangencial. Quando ele exaltou o trabalho do Velvet Underground em casa aos 17 anos, sua mãe revelou que os conhecia pessoalmente e chegou a dançar em shows deles.

Destruindo o passado para reconstruí-lo

Aos 18 anos de idade, Beck aproveitou uma promoção e comprou para si uma passagem de ônibus destinada a Nova York. Levou consigo apenas um violão e oito dólares. Chegando lá, viu-se mais ou menos na mesma realidade que a anterior: trabalhador de salário mínimo sem futuro aparente, essencialmente sem teto.

Entretanto, ele encontrou um lar artístico na comunidade nascente do anti-folk. O movimento era uma reação consciente a seriedade do gênero tradicional, só que em vez de guitarras – como Bob Dylan fez –, a iconoclastia vinha na forma de canções galhofa, muitas vezes deliberadamente mal tocadas ou até mesmo atonais.

Em entrevista de 1994 à Guitar Player, Beck falou sobre sua época na cena anti-folk:

“A missão era destruir todos os clichês e bolar novos. Todo mundo se conhecia. Dava pra subir no palco e falar qualquer coisa sem se sentir estranho ou sentir qualquer pressão.”

Isso muitas vezes significava que Beck desenvolvia canções improvisadas, nas quais combinava surrealismo com o cotidiano, aplicando a influência da arte feita por sua família. Não era tanto música quanto arte performática, e o músico trouxe esse estilo de volta à Los Angeles consigo em 1991.

As plateias em L.A. eram mais receptivas às suas tentativas de tocar blues raiz quando ele intercalava as músicas sérias com outras completamente esculhambadas. Como Beck descreveu à Rolling Stone em 1994:

“Eu cantava meu material zoado, porque todo mundo estava bêbado, e eu só tinha dois minutos. Esse era o meu tempo total.”

Essas canções eventualmente chamaram a atenção de figuras na indústria musical, em especial o trio Tom Rothrock, Rob Schnapf e Brad Lambert. Os três eram os proprietários do selo independente Bong Load Records e estavam interessados nas possibilidades aparentes no estilo do músico.

Ao descobrir o interesse de Beck no hip-hop, Rothrock o apresentou ao produtor Carl Stephenson. Os três começaram a desenvolver material juntos para o que seria um álbum. 

Durante uma sessão de brincadeiras musicais na casa de Stephenson em 1992, Beck começou a tocar um riff de slide no violão. O produtor gostou do que ouviu e rapidamente gravou para transformar em loop com uma batida de hip-hop. O músico então começou a bolar rapidamente uma letra no seu estilo fluxo de consciência. Nascia “Loser”. 

Em entrevista de 1999 à Elle, o artista falou sobre como a ideia estava quicando na sua mente havia alguns anos:

“Eu não acho que teria sido capaz de chegar no estúdio e fazer ‘Loser’ numa sessão de seis horas sem ter algo relativamente trabalhado. Foi acidental, mas era algo que eu estava trabalhando em direção há muito tempo.”

Era para ser uma mistura de Bob Dylan com Chuck D, do Public Enemy. Contudo, o resultado ficou tão tosco a ponto do compositor querer se repreender, como contou à Spin em 1994:

“Quando eles tocaram o resultado, eu fiquei tipo: ‘Eu sou o pior rapper!’. Então quando fiz o refrão, estava apenas me castigando.”

Beck detestou a canção final, mas concordou em lançar como single numa tiragem super limitada em 1993. Uma das cópias foi parar nas mãos de Tony Berg, A&R da Geffen, que levou a música para duas rádios universitárias: KLXU e KCRW, cujo programa “Morning Becomes Eclectic” se tornou desde então uma das maiores instituições alternativas dos EUA. 

Em entrevista de 1994 ao Los Angeles Times, George Douridas, diretor musical da KCRW, falou sobre a canção:

“Foi um daqueles achados incríveis. Eu liguei para o selo naquele dia e pedi para que Beck tocasse ao vivo. Ele veio naquela sexta, rappeou acompanhando uma fita de ‘Loser’ e tocou sua outra música, ‘MTV Makes Me Want to Smoke Crack’.”

Beck não esperava nada dessa aparição, mas sua apresentação naquela mesma noite em um café de Los Angeles lotou. Elas nunca tinham gente, muito menos lotavam.

A atenção gerada num nível local o assustou a ponto de quase considerar não assinar com nenhuma gravadora e deixar estar. Entretanto, a Geffen lhe deu total controle criativo e a possibilidade de lançar material em selos independentes sem passar por eles. Tal liberdade foi o fator decisivo.

O perdedor ganha

O cantor e compositor já havia lançado “Golden Feelings”, um álbum de estreia que era mais uma coleção de gravações caseiras. Em janeiro de 1994, ele viria a disponibilizar o EP “A Western Harvest Field by Moonlight” numa tiragem limitadíssima de 3 mil vinis de 10 polegadas. No final de fevereiro, ele liberou “Stereopathetic Soulmanure”, seu segundo disco, outro apanhado de canções antigas.

Era quase como um esvaziamento do armário. O que estava por vir era diferente. “Mellow Gold” saiu dia 1º de março de 1994, com uma prensagem mais ampla de “Loser” antecipando o álbum quase por um mês. Tempo suficiente para começar sua ascensão então inexplicável pelas paradas.

Os anos 1990 eram uma época incomum para a indústria musical, pois o público jovem alternativo havia se desenvolvido a ponto de essencialmente engolir o mainstream do gênero. Fórmulas de sucesso – ou melhor, noções do que não faria sucesso – eram provadas obsoletas. E “Loser” foi talvez o maior exemplo.

No auge do grunge e da ascensão do gangsta rap, aparecia um moleque franzino combinando rap com folk e blues lo-fi. Ele canta sobre ser um perdedor e é engraçado. Naturalmente, tentaram colocar Beck numa caixa, aplicando o rótulo de “slacker”, traduzido para “folgado”. E o artista não gostou disso, como disse à Rolling Stone em 1994:

“Slacker é a minha r#la. Eu nunca tive folga. Eu estava trabalhando por US$ 4 a hora para me manter vivo. Essa coisa de ‘slacker’ é pra pessoas que tem tempo de se deprimir com tudo.”

Entretanto, por mais que “Loser” seja casual no seu charme, o resto de “Mellow Gold” é muito bem pensado. Nessa mesma entrevista à Rolling Stone em 1994, Beck descreveu a ideia por trás do disco:

“O conceito todo por trás de ‘Mellow Gold’ é que se trata de uma coletânea K-tel satânica encontrada numa lixeira, bem isso mesmo. Algumas pessoas judiaram da cópia, dormiram com ela, quase engoliram antes de cuspir pra fora. Alguém jogou pôquer com ela, alguém tentou fumá-la. Então o disco foi levado pro Marrocos e coberto em hummus e tabule… Então trazido de volta para uma convenção de esqui aquático, que esquiaram nele e usaram como frisbee. Então o disco foi colocado na vitrola e a coleção original havia chegado a outro nível.”

A tradução disso é simplesmente a abordagem normal de Beck: pegar gêneros “quebrados”, esquecidos pelo público, e aplicar uma roupagem ao mesmo tempo familiar e irreconhecível. Folk, blues, hip-hop, psicodelia… tudo entra na panela pra dar caldo.

“Loser” chegou ao 10º lugar na Billboard Hot 100 e o topo na parada Modern Rock Tracks, a primeira canção lançada por um selo independente a conseguir tal feito. O single vendeu 600.000 cópias nos EUA

“Mellow Gold” chegou à 13ª posição na Billboard 200 e simplesmente serviu como trampolim para uma das carreiras mais influentes desde então. Beck teve sucesso comercial como cantor, compositor e produtor, sem falar do respeito da indústria. Vinte anos após sua revelação ao mundo, ele venceu o Grammy de Álbum do Ano por “Morning Phase”, gerando uma quase interrupção de Kanye West na cerimônia.

Ele sobreviveu a isso, e continua na ativa.

Beck — “Mellow Gold”

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

1 COMENTÁRIO

  1. Beck é o maior artista da geração dele. Uma playlist com as músicas dele, tocadas no aleatório, mos levam a uma viagem em estilos musicais, épocas diferentes, estruturas musicais diferentes, uma obra genial.

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