O rock and roll, vez que outra, dá origem a personas muito singulares, figuras emblemáticas, facilmente reconhecíveis mesmo em contextos extramusicais. Os Beatles de terninho. Gene Simmons com a língua para fora. David Bowie com a maquiagem de Ziggy Stardust. Freddie Mercury com meio pedestal e uma jaqueta amarela. E um guitarrista de longos cabelos encaracolados sob uma cartola. Pela quarta vez na capital gaúcha com seu trabalho solo — onde esteve, ainda, outras duas vezes com a banda que o projetou para o mundo — Slash, icônico guitarrista do Guns N’ Roses, presenteou o público com um show longo e, acima de tudo, muito competente.
Antes da atração de fundo, tivemos um show de abertura feito pelo Velvet Chains. Liderada pelo baixista Nils Goldschmidt, a banda formada em Las Vegas (composta ainda por Jason Hope na bateria, Ro Viper nos vocais e os substitutos Johnny Mayo e James Von Boldt nas guitarras que são de Lahi Cassiano e Burton Car) iniciou seu show pontualmente às 20h. Dona de uma proposta musical teoricamente alinhada com o headliner, o quinteto apresentou um hard rock genérico, que não decepciona, tampouco empolga. Tanto que o destaque do setlist foi a interessante versão para “Suspicious Minds”, clássico imortalizado por Elvis Presley que ganhou uma roupagem adequada ao estilo da noite.
O relógio marcava 20h59 quando as luzes do Pepsi On Stage se apagaram para o início do show principal. Sob luzes azuis, Slash, Myles Kennedy e os Conspirators (Brent Fitz na bateria, Frank Sidoris na guitarra e Todd Kerns no baixo) subiram ao palco. A silhueta mais aguardada da noite pode ser vista pela primeira vez logo antes de ganhar a atenção dos holofotes: o lendário guitarrista dá início a “The River is Rising” e levantou o público desde a primeira nota.
Na sequência, outros dois clássicos da carreira solo: “Driving Rain” e “Halo”, completaram a trinca que deu início à quarta apresentação de Slash na capital gaúcha. Apesar de prejudicados pelo som — que se manteve um pouco embolado durante toda a apresentação —, era latente o bom gosto na escolha dos timbres, a firmeza das execuções e, especialmente, o entrosamento da banda que em 2024 completa treze anos de sua formação.
Guitarras e mais guitarras
Além do que se espera de um show desse calibre — bom repertório e boa execução — a apresentação de domingo (4) também chamou a atenção pelo protagonismo ainda maior do que o habitual do instrumento sobre o qual Slash construiu sua carreira. O integrante do Guns N’ Roses pôde ser visto no palco empunhando modelos que foram além da companheira de todas as horas Gibson Les Paul. Em “C’est La Vie”, além de um talkbox, ele usou em uma Gibson Flying V. Já em “Actions Speak Louder Than Words”, foi uma Gibson Explorer a escolhida.
Os solos também foram um show à parte: em “Wicked Stone” foram mais de oito minutos de solo estendido. Não apenas a presença de Slash no palco agradou aos guitarristas que compareceram ao Pepsi On Stage, mas também suas escolhas técnicas e musicais, mesmo que com eventuais erros de execução que passaram despercebidos pela maioria.
Repertório audacioso
Apesar de o setlist já circular na internet, houve espaço para o que não podemos chamar exatamente de surpresas, mas momentos singulares que fugiram da previsibilidade. “Always On the Run” (Lenny Kravitz), canção escrita por Slash que fora originalmente recusada pelo Guns n’ Roses figurou no setlist e contou com o baixista Todd Kerns nos vocais. Contudo, a força do clássico ficou comprometida pela seção rítmica formada por Fitz e Kerns. Excelentes músicos de hard rock, os integrantes da “cozinha” deixaram a desejar ao não privilegiarem a característica mais importante de “Always On The Run”: seu groove.
A aparição subsequente de Kerns ao microfone foi em grande estilo: “Don’t Damn Me” contou com o baixista nos vocais em uma atuação de primeira grandeza, especialmente nas notas mais altas. A única música do Guns N’ Roses em todo o repertório da noite foi, também, um dos pontos altos do show de domingo.
A escolha de repertório, diga-se, foi audaciosa. Sem recorrer aos clássicos do Guns N’ Roses, Slash’s Snakepit e Velvet Revolver (apenas a já citada “Don’t Damn Me”, do Guns, e “Speed Parade”, do Snakepit, deram as caras no setlist), o show foi se tornando um pouco cansativo, especialmente por privilegiar “4”, seu trabalho mais recente, com sete canções.
Os demais pontos altos ficaram por conta de “Back from Cali”, “Starlight” e “Doctor Alibi” (outra a ter Todd nos vocais), todas do álbum “Slash”, as que mais empolgaram até ali. Já passávamos das duas horas de show quando a banda se despede do palco com outra dobradinha de peso: “You’re a Lie”, uma das mais bem-recebidas da noite, e “World on Fire”, esticada para a devida apresentação dos músicos, fecharam o tempo regulamentar daquele que já era o mais extenso show de Slash — em sua carreira solo — em Porto Alegre.
Bis de luxo
Após os minutos protocolares de hiato e algum clamor do público, a banda retorna para o bis. Com Slash no lap-steel e Brent Fitz no piano, a bela “Rocket Man (I Think It’s Going to Be a Long Long Time)”, de Elton John, emociona pela beleza e impressiona pela singularidade da interpretação. Tanto o arranjo, adaptado para o formato de uma banda de hard rock, quanto a interpretação de Myles Kennedy tornaram este um dos pontos altos do show. E, para pôr fim à apresentação, nenhuma surpresa: “Anastasia”, música do álbum “Apocalyptic Love”, fechou a apresentação de 2h20 e inacreditáveis 24 canções.
Previsivelmente competente
A quarta passagem de Slash, Myles Kennedy e os Conspirators por Porto Alegre não teve algo, além de sua duração, que a destacasse das demais. Da mesma forma que em 2012, 2015 e 2019, o que se pôde apreciar foi uma banda afiada, dois vocalistas impecáveis e uma performance impactante do guitarrista que é um dos maiores nomes da história de seu instrumento. Goste dele ou não, não há espaço para a negativa desse status nem para a contestação da competência musical e artística do que foi executado ao vivo.
No entanto, o show de Slash, hoje, não é para não-iniciados. Desavisados que esperam ouvir os clássicos que renderam ao artista fama e fortuna — mesmo com os constantes avisos em entrevistas de que eles não seriam tocados — certamente saíram decepcionados.
O homem da cartola deixa claro, através do setlist da atual turnê, que é um artista que não depende — e nem quer depender — do Guns N’ Roses para se manter ativo, criativo e relevante. Como seus álbuns, as apresentações ao vivo mantêm um nível constante de qualidade.
Talvez os desavisados possam ter se decepcionado com a distância mantida do repertório da banda de Axl Rose. Porém, os fãs que acompanham o trabalho de Saul Hudson com um pouquinho de atenção e boa vontade tiveram uma grande noite no Pepsi On Stage.
Slash feat. Myles Kennedy & the Conspirators — ao vivo em Porto Alegre
- Local: Pepsi On Stage
- Data: 4 de fevereiro de 2024
- Turnê: The River is Rising
Repertório – Velvet Chains:
- Wasted
- Back On the Train
- Enemy
- Eyes Closed
- Stuck Against the Wall
- Suspicious Minds (Elvis Presley)
- Last Drop
- Tattooed
Repertório – Slash feat. Myles Kennedy & the Conspirators:
- The River Is Rising
- Driving Rain
- Halo
- Too Far Gone
- Back From Cali
- Whatever Gets You By
- C’est La Vie
- Actions Speak Louder Than Words
- Always on the Run (Lenny Kravitz, Todd Kerns no vocal)
- Bent to Fly
- Sugar Cane
- Spirit Love
- Speed Parade (Slash’s Snakepit)
- We Will Roam
- Don’t Damn Me (Guns N’ Roses, Todd Kerns no vocal)
- Starlight
- Wicked Stone
- April Fool
- Fill My World
- Doctor Alibi (Todd Kerns no vocal)
- You’re a Lie
- World on Fire
Bis:
- Rocket Man (Elton John)
- Anastasia
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Para quem é fã mesmo o show não foi cansativo… de forma alguma.
Foi a melhor crítica que eu li sobre esse show. Parabens ao jornalista que escreveu pois percebeu todos os nuances do show, como a troca de guitarras por outras não habituais, a distância que se manteve do GnR, que eu já penso que Slash nem faz questão, imaginonque queira ficar em sua carteira solo e também o lap steel onde se percebe que é um território novo para ele mas para um guitarrista de 58 anos ainda estar preocupado em refiner sua técnica, é de no mínimo tirar o chapeu. Showzaço. Os não inciados que se iniciem e os que não gostam, pelo menos aceitem que o cara é um Senhor Música.