Em sua fase inicial, o Scorpions estava longe de ser a banda que hoje conhecemos. Na verdade, o som dos alemães era completamente diferente nos primeiros anos, em grande parte devido à presença de Uli Jon Roth, um guitarrista cuja ambição parecia ser a de se tornar a resposta da Alemanha a Jimi Hendrix.
Com Roth na formação, eram exploradas texturas e experimentações que tornavam sua música desafiadora e até inacessível para o ouvinte comum de rock. Os primeiros cinco álbuns de estúdio da banda, em sua maioria, alcançaram apenas sucesso local, o que não satisfazia os ambiciosos Klaus Meine (vocais), Rudolf Schenker (guitarra), Francis Buchholz (baixo) e Herman Rarebell (bateria).
Era evidente que algo precisava mudar.
Uma mudança necessária
Mudanças dentro das bandas são inevitáveis e muitas vezes motivadas por razões que variam desde questões de saúde até divergências artísticas. Buscando sua própria realização artística, Uli Jon Roth optou por deixar o Scorpions e formar sua própria banda, o Electric Sun.
De acordo com Herman Rarebell, registrado na autobiografia “And Speaking of Scorpions” (2011), a saída de Roth foi impulsionada por seu descontentamento com o rumo comercial que a banda estava tomando — especialmente em relação ao álbum “Taken by Force” (1977) — e por ele sentir que ela estava se tornando “musicalmente covarde”, comprometendo sua essência para agradar um público mais amplo.
“Ele não gostava da mentalidade comercial que parecia ter se tornado uma parte de todas as nossas conversas sobre o futuro (…) Em outras palavras, estávamos manchando nosso som com o objetivo de atrair mulheres que não gostavam de rock de verdade.”
Rarebell relata que o guitarrista defendia a preservação do som original da banda, combinando elementos da música clássica com a influência de Hendrix. “Da maneira que ele falava, parecia que havíamos abraçado a disco music abertamente e estávamos planejando gravar ‘Os Embalos de Sábado à Noite Continuam!’”, acrescenta o baterista.
Em uma entrevista citada na biografia “Wind of Change” (Estética Torta, 2022), Klaus Meine compartilhou uma visão semelhante, reconhecendo que a banda estava seguindo em direções diferentes. Ele é da opinião de que, com Uli, o Scorpions teria mantido sua poderosa presença, mas talvez não teria sobrevivido aos desafios dos próximos dez anos.
Uli Jon Roth realizou suas últimas performances ao vivo como membro do Scorpions nos dias 24 e 27 de abril de 1978. Esses shows foram posteriormente imortalizados no álbum ao vivo intitulado “Tokyo Tapes”, que chegou às lojas em agosto do mesmo ano.
Matthias Jabs, a peça que faltava
A saída de Uli Jon Roth deixou um vazio significativo, especialmente considerando a iminência do novo álbum que visava conquistar o mercado americano. A busca por um substituto começou na Inglaterra.
Michael Schenker, irmão de Rudolf, outrora integrante do Scorpions e recém-saído do UFO, inicialmente retornou, contribuindo na composição de quatro músicas. No entanto, deixou claro que sua participação seria temporária, abrindo espaço para a testagem de mais de cem guitarristas em Londres.
Entre os candidatos, o alemão Matthias Jabs emergiu como uma escolha promissora. Após ele fazer alguns shows em 1978, a dinâmica de testes continuou com idas e vindas entre Michael e Matthias. Finalmente, em 4 de abril de 1979, a incerteza chegou ao fim: Jabs consolidou-se como o guitarrista solo do Scorpions, posição que mantém até os dias de hoje.
Klaus Meine destaca:
“Quando Matthias Jabs entrou na banda, Rudolf e eu pudemos seguir nosso próprio caminho e fazer o que queríamos.”
O guitarrista Rudolf Schenker reforça a importância da dinâmica de equipe:
“Michael e Uli Jon Roth são guitarristas fantásticos, mas não eram bons colegas. Logo, Matthias foi alguém que entrou na banda pronto para integrar um time. Isso é crucial para construir uma carreira. Só é possível alcançar isso quando os músicos se conectam como se estivessem montando um quebra-cabeça.”
Transformação sonora
Em “Lovedrive”, o Scorpions não apenas unifica sua visão musical, mas também compartilha a composição entre músicos alinhados com um objetivo vendedor comum para a banda. Herman define a transição: “Nunca íamos ser o próximo Led Zeppelin. Tínhamos de ser o primeiro Scorpions”.
A voz distintiva de Klaus Meine torna-se o ponto central, evidenciando uma mudança significativa em relação a “Taken by Force”. Essa ênfase nos vocais resultou da influência do produtor Dieter Dierks, crucial no desenvolvimento vocal de Klaus e no refinamento do som do Scorpions.
Utilizando uma metáfora esportiva, Rudolf compara a dinâmica do grupo a um time de futebol, enfatizando a importância de cada membro na construção de um ritmo coeso:
“Sabe, eu vejo um grupo de músicos de rock mais como um time de futebol. Matthias e Klaus são os caras que marcam os gols. Eu sou o meio de campo, no estilo do Beckenbauer, o baixista é mais uma espécie de zagueiro, e o goleiro acaba sendo o baterista. Então, aqui, nós temos algo bem interessante. Quando trabalhamos, Matthias e eu, junto ao Dieter Dierks, tentamos realmente fazer o ritmo. Não que a gente sempre tocasse a mesma coisa – não, a gente tenta fazer um aglomerado de forma que todo mundo tenha a sua função, construa um ritmo forte e uma fundação rítmica energética para a linda voz do Klaus. É por isso que o Dieter sempre tentou forçar o Klaus a cantar em tons bem altos, porque o Dierks descobriu que quando ele está cantando muito alto, a energia é ainda mais forte. Isso compõe o som do Scorpions: ótimas melodias, vocais altos e bem fortes, além, é claro, da grande máquina rítmica, com ótimas frases nos solos.”
Incursão no reino das power ballads
Outra virada marcante em “Lovedrive” foi a incursão do Scorpions no reino das power ballads, elemento que os realçou entre as bandas de hard rock e se tornou crucial para o sucesso na década de 1980. Herman acredita que, com isso, o grupo redefiniu alguns parâmetros:
“Para que essas músicas, antes consideradas fillers e que muitos ouvintes não apreciavam, se tornassem agradáveis não apenas para as moças, mas também para seus parceiros. Encontrar a combinação certa, que faça ao mesmo tempo uma mulher se emocionar e um cara conseguir transar, é a chave para qualquer empreendimento de sucesso no mundo; seja na música, seja em um cheeseburger.”
A primeira power ballad do “novo” Scorpions, “Holiday”, encerra o álbum com uma atmosfera onírica, evocando imagens de lugares ensolarados e bem-estar. Apesar de não ter sido lançada como single, permanece popular entre os fãs, sendo a nona música mais tocada pelo grupo ao longo de sua carreira.
A função de single coube a duas músicas mais voltadas para o hard rock do álbum: a faixa-título e “Is There Anybody There”; esta última trazendo, como lado B, “Another Piece of Meat”, outra favorita dos fãs.
No livro “German Metal Machine: Scorpions in the ‘70s”, o letrista Rarebell compartilhou a origem da canção, inspirada em uma experiência no Japão e influenciada pela prática do kickboxing:
“Escrevi ‘Another Piece of Meat’ no Japão. Quando estava lá, estava com essa garota que gostava muito de kickboxing. Isso é como uma forma diferente de boxe que você tem nos Estados Unidos ou aqui na Europa. Esses boxeadores também podem chutar com os pés, e na maioria das vezes, lutam desarmados ou com pequenas bandagens nas mãos. Portanto, muito sangue estava espalhado por toda parte. De repente, pensei na minha cabeça: ‘Vamos lá, não faça um espetáculo. É apenas mais uma peça, outra peça de carne’. E tendo essa frase na minha cabeça, eu tinha basicamente toda a letra na minha cabeça, terminada em cerca de 20 minutos. Quando saímos no dia seguinte, escrevi tudo e também tinha o riff na minha cabeça [canta o riff da guitarra] (…) transferi para a guitarra, com o Rudolf. Então, ele escreveu a parte do meio, e assim chegamos a ‘Another Piece of Meat’.”
A controvérsia da capa
Quando o Scorpions deu o sinal verde para Storm Thorgerson, da Hipgnosis, criar algo “muito louco” para a capa de “Lovedrive”, não previu a controvérsia que se seguiria nos Estados Unidos — o mercado que tanto almejavam conquistar.
A capa criada por Thorgerson apresenta um casal bem-vestido no banco de trás de um carro, com o seio direito da mulher conectado à mão do homem por um chiclete esticado. A contracapa complementa a imagem, expondo o seio esquerdo da mulher enquanto o casal segura uma fotografia da banda.
Em uma entrevista ao Metal Exile em 2010, Klaus Meine expressou surpresa com a repercussão nos Estados Unidos, salientando que, “durante as turnês nos anos 1980, as performances ao vivo frequentemente incluíam mulheres mostrando os seios na frente do palco, sem provocar reações negativas”. Ele compartilhou que, por isso, “não imaginávamos que a capa de ‘Lovedrive’ seria um problema na América”.
Ao artista plástico Steven Cerio, Thorgerson reconheceu que a imagem não é das mais politicamente corretas e que, embora a tenha achado engraçada na época, “as interpretações, especialmente das mulheres, evoluíram ao longo do tempo”. A capa acabou sendo censurada em vários países além dos Estados Unidos, onde foi substituída por uma preta com um escorpião azul.
Conquistando fronteiras
Lançado em 25 de fevereiro de 1979 pelos selos Harvest na Europa e Mercury na América, “Lovedrive” marcou o início de uma nova era para o Scorpions. Essa mudança de gravadora trouxe avanços notáveis, especialmente nos Estados Unidos, onde o álbum alcançou a 55ª posição no Top 200 da Billboard, um feito inédito para a banda. O êxito comercial, no entanto, seria consolidado apenas em 28 de maio de 1986, quando a RIAA certificou o álbum com o disco de ouro, atestando a venda de mais de 500 mil cópias nos EUA.
“Lovedrive” não apenas conquistou o público americano, mas também teve desempenho notável em outros territórios, atingindo a 36ª posição nas paradas do Reino Unido e entrando no Top 10 na Suécia e na França. Na Alemanha, foi por pouco, ficando na 11ª posição.
O lançamento do álbum marcou o início de uma extensa turnê mundial para o Scorpions, começando com shows pela Suíça e pela Holanda, seguidos por uma temporada significativa em solo alemão. O giro expandiu-se para França, Bélgica, Inglaterra (incluindo uma participação no programa de TV The Old Grey Whistle Test, da BBC), Escócia e Japão.
A etapa norte-americana da turnê, que teve início com uma apresentação no festival World Series of Rock, no qual também tocaram AC/DC, Aerosmith, Journey, Thin Lizzy e Ted Nugent, contou com 49 shows e encerrou-se em 7 de dezembro de 1979.
Renascimento global
A bem-sucedida turnê pelos Estados Unidos e Canadá é considerada pela própria banda como um renascimento, desta vez em escala global. Klaus compartilha com o biógrafo Martin Popoff que o Scorpions nunca teve a oportunidade de explorar os EUA quando sob a gestão da gravadora anterior, a RCA.
“Tenho certeza de que as coisas poderiam ter acontecido muito mais cedo se tivéssemos a oportunidade de sair em turnê por lá. A RCA simplesmente não acreditava na banda. Não percebíamos que eles eram apenas uma grande gravadora para artistas como Elvis e Dolly Parton, não para bandas de rock. Quando lançávamos um álbum, eles nos diziam que esperariam até o próximo para nos enviar aos Estados Unidos. Era uma situação difícil, e eles definitivamente foram um obstáculo durante todos esses anos.”
Virando a página, o vocalista enaltece “Lovedrive”.
“Ter Michael Schenker de volta por um momento durante as sessões do ‘Lovedrive’ parecia uma reunião de família feliz, que acabou não sendo. No entanto, houve uma parte muito criativa que veio com Michael Schenker, em músicas como ‘Lovedrive’ e ‘Holiday’. O disco foi empolgante de fazer, as sessões foram intensas, lutamos para superar os problemas com a guitarra, com Matthias entrando e saindo, e Michael fazendo o mesmo. Foi um disco em que estávamos batalhando duramente para sobreviver a todos os problemas, mas, ao mesmo tempo, éramos muito criativos, e produzimos músicas incríveis.”
Scorpions — “Lovedrive”
- Lançado em 25 de fevereiro de 1979 pela Harvest (Europa) e Mercury (América do Norte)
- Produzido por Dieter Dierks
Faixas:
- Loving You Sunday Morning
- Another Piece of Meat
- Always Somewhere
- Coast to Coast (instrumental)
- Can’t Get Enough
- Is There Anybody There?
- Lovedrive
- Holiday
Músicos:
- Klaus Meine (vocais)
- Rudolf Schenker (guitarra rítmica e solo)
- Matthias Jabs (guitarra solo)
- Francis Buchholz (baixo)
- Herman Rarebell (bateria)
Músico adicional:
- Michael Schenker (guitarra solo)
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Meu álbum preferido dos alemães e meu jornalista de Rock preferido… Só podia ter saído coisa boa!