Lançado em 15 de fevereiro de 1974, “Burn” foi o início de uma revolução no Deep Purple. À época um dos gigantes do rock em escala global, o grupo perdeu dois integrantes: o vocalista Ian Gillan e o baixista Roger Glover. Os dois foram substituídos, respectivamente, por David Coverdale e Glenn Hughes — este último, também cantor e inicialmente trazido para assumir o posto de frontman, até que Ritchie Blackmore (guitarra), Ian Paice (bateria) e Jon Lord (teclados) reconsideraram e chamaram o futuro líder do Whitesnake. Começava ali uma nova fase, com foco nas dobras vocais e influências de funk e soul music.
A relação ruim fez com que Gillan deixasse o Purple após uma turnê no Japão, na metade de 1973. Roger Glover, que já havia manifestado interesse anteriormente em sair da banda, o acompanhou na fila de saída. Ambos culparam a falta de descanso, que deu combustível para as tensões entre os dois e o genioso Blackmore. Em entrevistas, Lord costumava dizer que as saídas de Gillan e Glover representavam “a maior lástima do rock and roll”. “Só Deus sabe o tamanho que teríamos nos três ou quatro anos seguintes”, disse o tecladista, falecido em 2012, à BBC.
Os remanescentes – Paice, Lord e Blackmore – pensaram, inicialmente, em dar fim ao Deep Purple. Guitarrista e baterista cogitaram até trabalhar com Phil Lynott, do Thin Lizzy, em um novo projeto, chamado Babyface. Todavia, eles mudaram de ideia e optaram por seguir. Hughes, então frontman do ascendente Trapeze, foi contratado de início. Depois, veio o então desconhecido Coverdale, já que o alvo inicial — Paul Rodgers, do Free e Bad Company — recusou o convite.
Ao NME, Blackmore chegou a comparar o som do Purple na época a “um Beatles com um tom hard rock”, devido ao trabalho com mais de um cantor. De fato, poucas bandas da época faziam harmonias vocais como esses dois nomes. Mas não é só isso que faz de “Burn” um álbum tão especial.
Em outubro de 2023, pude entrevistar Glenn Hughes, que estava prestes a vir ao Brasil para fazer uma turnê celebrando o disco em questão. Durante o bate-papo, o baixista e cantor promoveu uma verdadeira viagem ao tempo ao comentar todas as músicas de “Burn”, evidenciando as melhores características do trabalho.
Neste segmento, será adotado o formato pingue-pongue, com as perguntas feitas e as respostas na íntegra. A entrevista também conta com uma versão em vídeo disponível no YouTube.
Glenn Hughes e um faixa-a-faixa de “Burn”, do Deep Purple
“Burn”, a música
Igor Miranda: A faixa-título, “Burn”, é uma incrível introdução à formação Mark III. Você se lembra do processo de compor e gravar essa música?
Glenn Hughes: “Sim. Sabe, essa foi a última música que criamos no castelo de Clearwell. Fomos ao pub, não tínhamos uma música final, e Blackmore disse: ‘por que não criamos uma música chamada ‘Burn’?’. Então ficamos bêbados e criamos aquela música. Então, essa foi a última música que escrevemos.”
Sempre tive a impressão de que essa faixa é uma espécie de “colagem” de músicas diferentes. É como ter duas ou três músicas diferentes de hard rock em uma só, especialmente a parte que você canta. Você se lembra como surgiu essa parte específica?
GH: “Criamos aquela parte clássica de ‘Burn’, você sabe, aquela parte muito influenciada por Bach e com a vibe de Jon Lord. E então chegamos a esta seção que não existia. Então sugeri tocar aqueles acordes e cantei. É uma coisa bem Glenn, como vocês podem ouvir, mas funciona muito bem. Aquela seção intermediária onde eu canto mais alto, que eu chamo de seção ponte, era algo que o Purple nunca tinha feito antes. Achei que ficou único.”
Fala-se muito sobre o riff principal de “Burn” ter sido copiado de uma música composta nos anos 1940: “Fascinating Rhythm”, de George Gershwin. Você já falou sobre isso em outra entrevista recente, mas na época, nos anos 1970, era ainda mais comum artistas “pegarem emprestado” de outros artistas, né?
GH: “Sim. Veja, não acho que Richie tenha copiado de ‘Fascinating Rhythm’. Apenas soa parecido. Não creio que ele tenha feito isso deliberadamente. Mas quando ouvimos essas duas músicas… foi Gene Simmons quem me contou sobre isso. Então a culpa é do Gene por falar sobre isso. Mas sim, de fato, parece um pouco.”
“Might Just Take Your Life”
IM: Então temos “Might Just Take Your Life”. Você já disse antes que não acha que essa música poderia ter sido composta para a formação anterior Mark II, por causa daquela pegada bem bluesy. Mas até onde eu sei, foi composta principalmente por Jon Lord — que, claro, estava na formação do Mark II. O quanto você acredita que o processo de composição do Deep Purple mudou com a chegada de você e de David, especialmente entre os três caras restantes?
GH: “Sabe, quando entramos no castelo para compor aquele álbum, não tínhamos ideia real de como as músicas iriam surgir. Mas sabendo que David e eu éramos diferentes de Ian Gillan e Glover… Ritchie, Jon e Ian Paice sabiam que estávamos criando algo diferente, mas mantendo a pegada rock clássico. Lembre-se que não estávamos tentando fazer nada além de gravar um álbum de rock. E sentimos que ‘Might Just Take Your Life’ com a introdução de Jon era uma ótima maneira de começar a música.”
E o que você acha de “Might Just Take Your Life” hoje em dia? Eu sei que você sempre gosta da sensação baseada no blues, mas o que você acha dessa música?
GH: “Adoro essa música. Eu a toco ao vivo, como você sabe. É ótimo, cara. Eu canto tanto a minha parte quanto a parte do David. Funciona muito bem. Novamente, é uma música que toco ao vivo e realmente toco. Adoro cantá-la.”
“Lay Down, Stay Down”
IM: E então vem “Lay Down, Stay Down” com ritmo mais acelerado novamente, como na faixa-título. Ian Paice tem uma performance brilhante aqui, mas não há um bom trabalho de bateria sem um bom trabalho de baixo. Eu adoro a linha no refrão. O que você lembra de trabalhar nessa música, não só os vocais, mas também o baixo?
GH: “Essas músicas foram compostas muito rapidamente. E estávamos naquela sala na masmorra deste castelo e criamos aquele ritmo. Aquela linha de baixo é muito importante para aquele refrão. Você sabe, poderiam ter sido acordes muito simples e abertos. Poderia ter sido… Foi difícil de fazer, mas soou ótimo.”
E você é chamado de The Voice of Rock (A Voz do Rock) de forma muito justa, mas já que falei do seu jeito de tocar baixo, você acredita que talvez o seu trabalho como baixista não seja tão reconhecido como deveria? Você também é um baixista incrível, mas as pessoas não falam muito sobre isso. O que você acha disso?
GH: “É uma conversa bem conhecida quando as pessoas falam sobre o vocalista Glenn. Falam de ser A Voz do Rock, o que é fantástico. Mas às vezes eles esquecem que eu também adoro tocar baixo. Agradeço muito que falem sobre minha voz, mas quero que as pessoas saibam no Brasil que eu adoro tocar baixo.”
“Sail Away”
IM: A seguir temos “Sail Away”, e acho que essa música representa muito do som do Deep Purple nos próximos dois álbuns. Já li você dizer que essa é uma das suas músicas favoritas do álbum. O que você mais gosta nela?
GH: “Eu amo o groove. O ritmo é muito importante para mim. É um groove diferente do que o Deep Purple havia criado antes. E comigo entrando na banda, foi o tipo certo de groove que escrevemos para David e eu. Foi uma mudança definitiva em comparação à formação Mark II. ‘Sail Away’ é uma das minhas músicas favoritas do álbum. David e eu cantamos tão bem juntos.”
“You Fool No One”
IM: Depois temos “You Fool No One”, que tem, talvez, uma das melhores performances de bateria da história do rock, na minha opinião. Você mencionou em outras entrevistas que essa música foi influenciada por Ian Paice estar ouvindo Led Zeppelin na época, mas fico curioso para saber como foi composta. O groove da bateria foi a primeira ideia ou o groove veio de outra melodia? Qual foi a ordem?
GH: “Acredito que a música começou em uma jam. Paice estava tocando aquele ritmo. E nós todos, Richie, Jon e eu, começamos a tocar em Mi (E). A música surgiu de um groove de bateria.”
Já que falamos sobre reconhecimento antes, você acredita que Ian Pace talvez devesse ser mais lembrado entre os melhores bateristas da história? Muito se fala sobre John Bonham e ele também foi incrível. Mas Paice também está entre os maiores da história, não acha?
GH: “Eu acho. Eu acho que Ian Paice e John Bonham nos anos 70 eram os dois maiores bateristas do início dos anos 1970. Eles eram os dois líderes.”
“What’s Going On Here”
IM: E então vem “What’s Going On Here”, que traz de volta um pouco da vibe blues que ouvimos em “Might Just Take Your Life”. É uma música onde a dinâmica entre você e David funciona muito bem. Que lembranças você tem da gravação dessa música, especificamente das partes vocais com David?
GH: “Foi uma jam, uma improvisação muito simples. Estávamos basicamente inventando coisas no microfone. E o que você ouve nessa música é uma verdadeira jam.”
As pessoas sempre falam sobre cantores terem batalhas de ego com os colegas, mas você e David sempre soaram muito altruístas, não só neste álbum, mas nos outros dois também. Como foi trabalhar com David neste álbum como um todo?
GH: “David e eu sempre fomos bons amigos e nunca, nunca nos preocupamos com quem estava cantando isso ou aquilo, ou quem não iria cantar algo. Éramos muito bons um com o outro, apoiando-nos uns aos outros como amigos, mas também como vocalistas.”
“Mistreated”
IM: Depois vem “Mistreated”, uma música única em todo o catálogo do Purple, na minha opinião. Você disse antes que quando Ritchie tocou para você o riff dela pela primeira vez, você soube imediatamente como se sentiria em casa no Purple. O que você acha dessa música quase 50 anos depois?
GH: “É uma ótima música. Eu adoro cantá-la. Você provavelmente já me ouviu cantando essa música antes. É uma música que sempre irei cantar. É uma das minhas músicas favoritas do Purple de todos os tempos. Uma bênção. Ritchie tocou essa música para mim antes mesmo de David entrar e quando ele começou a tocar aquele pequeno riff, pensei: ‘ok, teremos um bom álbum aqui’. Se esta fosse a primeira música que ele criasse para o álbum, eu já saberia que teríamos um ótimo álbum.”
Richie também está em um momento muito inspirado aqui. E acho também que muitos fãs acabam lembrando de Richie mais pelas polêmicas do que pelo talento gigantesco. Como foi trabalhar com Richie na época?
GH: “Foi ótimo. Richie e eu éramos muito próximos naquele período. Eu estava na casa dele e éramos muito amigáveis. Só tenho coisas boas a dizer sobre Ritchie. Sabe, ouvimos muitas histórias malucas sobre ele, mas genuinamente por trás de todas as histórias, de todas as fofocas e de todos os rumores, ele é um homem bom, gentil e engraçado.”
Mesmo? Não consigo imaginar Ritchie sendo um cara engraçado, por causa das histórias, é claro.
GH: “Pior que ele é um cara engraçado!”
“A-200”
IM: E por fim, temos a grandiosa instrumental “A-200”, uma ótima forma de encerrar o grande álbum.
GH: “Sim, foi outra jam. Jon teve uma ideia e nós deixamos Jon meio que ficar com a bateria. Bem bolero. Novamente, foi outra jam. E essa realmente não foi composta no castelo. Foi basicamente composta enquanto gravávamos.”
E como era trabalhar com Jon? Ele sempre pareceu ser uma pessoa super legal e única no rock em geral. É isso mesmo?
GH: “Jon, na minha opinião… trabalhei com Keith Emerson e com Jon Lord. Jon era um cavalheiro, uma pessoa boa, gentil e atenciosa, que também era um excelente pianista. Jon Lord era um ser humano genuinamente bom, talentoso e muito gentil.”
**A versão da entrevista em vídeo pode ser conferida abaixo.
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