Menos de três anos após o lançamento de seu primeiro álbum, os Beatles abandonaram a estrada. Qualquer outro artista na história da música popular veria essa decisão como impensável, especialmente naquela época. Porém, o quarteto de Liverpool havia chegado a um nível de sucesso nunca antes imaginado. Eles podiam se dar o luxo de não sair em turnê e se enfurnar nos estúdios de Abbey Road para apenas revolucionar o pop a cada novo lançamento.
O efeito colateral disso foi que os integrantes, agora liberados do convívio próximo em quartos de hotel por todo o planeta, adquiriram vidas separadas para si. Como cada um desenvolveu um interesse particular, o que antes era uma das máquinas mais azeitadas do planeta se tornou fonte constante de fricção.
A solução encontrada foi voltar a se apresentar. Nada de turnês, só um especial de TV, no qual seriam tocadas músicas inéditas. Precisava ser enorme, afinal, eram os Beatles. Uma locação exótica, histórica. Essa ideia logo foi abandonada.
No final, eles tocaram num telhado. Essa é a história por trás.
O fim dos shows
Os Beatles pararam de fazer shows por vários fatores. Nenhum outro artista até então havia desfrutado um sucesso semelhante ao deles, com estádios repletos de adolescentes frenéticas gritando incessantemente. Nenhum outro artista sequer necessitava tocar em estádios para acomodar a demanda por ingressos.
Isso carregava consigo alguns problemas. Primeiro, não existiam sistemas de som como os de hoje. Tudo que bandas tinham à sua disposição eram os amplificadores. A Vox inventou sua série mais famosa de produtos simplesmente para suprir as demandas de artistas britânicos que necessitavam de volume. E os Beatles eram os garotos propaganda.
Entretanto, isso não importava. O volume dos gritos era tamanho que John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr poderiam apenas fingir tocar — o público queria ver mesmo o espetáculo visual dos Beatles. A música era secundária.
Isso não descia bem para os integrantes, uma vez que em 1966 eles estavam bem no meio da fase mais experimental da carreira. “Rubber Soul”, lançado um ano antes, e “Revolver”, disponibilizado em agosto, sinalizaram o futuro da música pop.
O tempo é chave nessa frase. “Futuro” e não “presente”, pois não tinham como tocar essas canções ao vivo. Eles não podiam apresentar nenhuma das faixas revolucionárias, tamanhas as limitações tecnológicas da época.
Então, eles tocavam o material antigo. Faziam até as mesmas piadas entre canções.
As turnês se tornaram obrigações desagradáveis. Após uma passagem pelos Estados Unidos na qual sentiram na pele a reação dos fundamentalistas religiosos ao comentário de John Lennon sobre a banda ser mais popular que Jesus, os Beatles abandonaram a estrada no dia 29 de agosto.
O último show foi em San Francisco. O estádio Candlestick Park, lar do time de baseball Giants, foi inaugurado seis anos antes e ficava numa região da baía local notória por receber rajadas de vento fortes do meio para o final da tarde. A ponto de operários que trabalharam na construção frequentemente serem forçados a parar obras antes do final do horário comercial. A noite do último show dos Beatles trouxe um vendaval fortíssimo para o lugar.
O assessor de imprensa Tony Barrow, que acompanhou a banda nessa última turnê, descreveu a Bob Spitz no livro “The Beatles – A Biografia” os acontecimentos:
“Não era o tipo de noite em que você gostaria de estar num espetáculo ao ar livre… Os rapazes estavam muito cansados e mal conseguiam esperar que aquilo acabasse.”
Após apenas 11 músicas, a carreira ao vivo dos Beatles terminou.
Subindo no telhado figurativamente
Pelos próximos dois anos, os Beatles basicamente reconfiguraram o paradigma da canção pop. Seus álbuns se tornaram cada vez mais ambiciosos ao incorporarem elementos de compositores avant-garde, novas técnicas de estúdio e uma quantidade de instrumentação impossível de reproduzir ao vivo. Eles não precisavam.
Quando terminaram de gravar o “White Album”, contudo, a relação entre os integrantes estava desgastada. Cada um passou o ano de 1968 explorando caminhos da vida além dos Beatles. John havia deixado sua esposa e filho para morar com a artista japonesa Yoko Ono. George se dedicou ao seus estudos espirituais, levando a temporada na Índia muito mais à sério que o resto da banda. Paul conheceu Linda Eastman e se apaixonou. Ringo continuava a ser ele mesmo.
O caminho encontrado por Paul McCartney para tentar recobrar a magia do grupo e reaproximar os quatro foi relativamente simples: uma volta aos palcos. Os Beatles iriam desenvolver material para um especial de TV deles se apresentando perante uma plateia, do qual sairia um álbum ao vivo. A palavra de ordem era simplicidade, um retorno às origens deles.
Os outros integrantes toparam a ideia. Estavam inspirados pelo trabalho de Bob Dylan com The Band e motivados pela promessa de se apresentarem ao vivo novamente.
A partir daí, começaram a aparecer problemas. Uma banda do tamanho dos Beatles não pode se apresentar em qualquer lugar. Precisava ser um local capaz de conter a majestade do maior conjunto da história. Ao menos essa era a ladainha de Michael Lindsay-Hogg, contratado para filmar o especial e um documentário sobre os bastidores. Estava se discutindo seriamente usar como locação um anfiteatro romano na Líbia.
Não havia material quando eles começaram a ensaiar, em janeiro de 1969, num galpão do Twickenham Studios. Ao fim da primeira semana, George foi embora, frustrado com tudo.
Sua condição para retornar não só aos ensaios, mas à banda, foi o cancelamento do especial. Eles iriam trabalhar nas canções até então ensaiadas em paz no estúdio da série da Apple Corps.
Subindo no telhado literalmente
As sessões reiniciadas correram bem, com o pianista americano Billy Preston se juntando à banda nas gravações a convite de George Harrison. O clima entre os integrantes foi muito melhor. No que o processo se aproximava do fim, Paul McCartney e Michael Lindsay-Hogg ainda queriam ao menos uma apresentação do grupo.
Durante um almoço no dia 29 de janeiro, Ringo Starr mencionou a laje do edifício onde a Apple Corps funcionava. Isso colocou a ideia na cabeça de John Lennon, que sugeriu dar uma olhada.
Em entrevista feita para o “The Beatles Anthology”, George Harrison falou:
“Fomos no telhado para resolver a ideia do show, porque era muito mais simples do que tocar em qualquer outro lugar; além disso, ninguém havia feito algo assim antes, então seria interessante ver o que aconteceria quando começássemos a tocar lá.”
A ideia foi tão espontânea que pouquíssimos funcionários da Apple sequer foram informados. Os Beatles iam se apresentar pela primeira vez em quase dois anos e meio, mas para a máquina construída ao redor da banda, era apenas mais um dia de trabalho.
Segundo uma entrevista de Ken Mansfield, diretor do selo Apple para os Estados Unidos, para a Rolling Stone, os integrantes estavam tensos, se questionando até a porta do telhado sobre a ideia. Mas ele falou sobre quando começaram a tocar:
“Eles saíram pro telhado e começaram a tocar. Eu estou a um metro e meio, dois metros deles, então estou virtualmente de cara com a banda. Quando começaram a tocar, em algum ponto — e isso é algo que nunca vou esquecer —, teve esse momento em que Paul olhou pro John, ou John olhou pro Paul, e teve esse choque de reconhecimento. É como se estivessem falando: ‘Sabe o que mais? Não importa o que aconteça, isso é a gente. Isso é o que sempre foi. Coisas estão acontecendo agora, mas somos quem somos, uma boa banda de rock’n’roll’.”
O repertório dos Beatles no topo da Apple Corps teve nove números. A saber:
- “Get Back” (tomada um)
- “Get Back” (tomada dois)
- “Don’t Let Me Down” (tomada um)
- “I’ve Got a Feeling” (tomada um)
- “One After 909”
- “Dig a Pony”
- “I’ve Got a Feeling” (tomada dois)
- “Don’t Let Me Down” (tomada dois)
- “Get Back” (tomada três)
A sede da Apple fica localizada no meio de Saville Row, uma das ruas mais tradicionais de Londres, onde alguns dos melhores alfaiates do planeta estão sediados. E a 300 metros de uma delegacia. Então, a banda sabia muito bem que a interrupção do show pela polícia não era uma questão de “se”, e sim “quando”.
Esse “quando” foi bem no meio do set. Enquanto os Beatles começavam a tocar “One After 909”, os policiais Ray Dagg e Ray Shayler apareceram na portaria da Apple para acabar com a performance. A esse ponto, além das reclamações de barulho feitas por comércios adjacentes, uma multidão se formou na rua. Afinal, era um show da maior banda do planeta.
Ray Shayler falou ao Daily Mail em 2021 sobre o episódio:
“Não diria que eu era um fã, mas gostava da música deles. Tinha alguns discos em casa. Não curti muito quando passaram pela fase Hare Krishna. De qualquer modo, quando fui até lá, meu trabalho era encerrar o distúrbio, fosse quem fosse. Quando chegamos, eles simplesmente nos olharam e prosseguiram. Conversei com o manager e expliquei que por mais que apreciasse o que estavam fazendo, não poderíamos simplesmente deixar continuar. Disseram que fariam mais uma música e encerrariam, então, consentimos. Não houve uma discussão acalorada, apenas uma conversa.”
A canção final foi uma terceira tentativa de gravar “Get Back”. John Lennon improvisou uma letra refletindo a situação:
“You’ve been playing on the roofs again, and that’s no good, ‘cause you know your mummy doesn’t like that … she gets angry … she’s gonna have you arrested!” [“Você tem tocado no telhado de novo, e isso não dá, porque você sabe que sua mamãe não gosta… ela fica zangada… ela vai mandar te prender!”]
No meio da canção, sob instrução dos policiais, o assistente Mal Evans desligou os amplificadores de guitarra de George Harrison e John Lennon. Os dois simplesmente religaram e continuaram a tocar.
Ao final da apresentação, John falou uma frase que acabou aparecendo na versão final do disco:
“I’d like to say thank you on behalf of the group and ourselves, and I hope we’ve passed the audition.” [“Eu gostaria de agradecer em nome do grupo e nós mesmos, e espero que tenhamos passado no teste”]
E foi isso. Os Beatles não acabaram ali. Eles ainda viriam a gravar “Abbey Road”, cujo processo começou em fevereiro de 1969, mas esse álbum seria um retorno ao experimentalismo de estúdio de antes. “Let It Be”, gerado a partir das sessões que renderam o show no telhado, saiu em 1970 com a banda já encerrada. Um documentário homônimo saiu no mesmo ano; décadas depois, foi expandido para “The Beatles: Get Back”.
O sonho deles voltarem a fazer shows ficou no passado. Mesmo assim, eles provaram ainda ter uma última apresentação icônica na manga.
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