Engana-se quem pensa que a genialidade de Roger Waters se limita ao Pink Floyd. Já são quase quatro décadas desde a saída do grupo e o trabalho do músico britânico segue fascinante e relevante — como mostra o espetáculo “This is Not a Drill”. A passagem da turnê pelo Brasil já se encaminha para o fim, mas o impacto das apresentações vai ficar com alguns espectadores.
Na última quarta-feira (8), foi a vez de Belo Horizonte vivenciar o espetáculo conceitual e político de Waters. Com o Mineirão cheio, às 21h20 o estrondo de um raio nos auto-falantes deu a deixa para Waters surgir no palco acompanhado de dois enfermeiros.
Prólogo
“Comfortably Numb”, em uma versão mais sóbria, iniciou a narrativa contada nas horas seguintes. Mesmo em um formato diferente do lançado em “The Wall” (1979) — sem o solo clássico — a faixa cumpre a função de cativar pela emoção e preparar o terreno para a pedrada de “The Happiest Days of Our Lives” e as partes 2 e 3 de “Another Brick in The Wall”.
Ainda neste inicinho do show, o público mostrou o que tinha a “oferecer” durante a noite. Havia um clima de boteco na pista premium, onde vários amigos bateram papo em rodinhas sem perceber o que acontecia no ambiente, só parando a conversa para correr o olho em uma música ou passagem muito conhecida. Era evidente que algumas pessoas estavam desconfortáveis com o ruído que isso causou na experiência.
“The Powers That Be”, música do álbum solo “Rádio K.A.O.S.” (1987), abusou dos recursos visuais para ilustrar o militarismo e a violência policial abordados na letra.
Um ponto que merece destaque no espetáculo são os recursos usados para superar a barreira da linguagem e entregar a mensagem. Pode parecer algo simples, mas a tradução das frases nos telões é muito significativa e reforça o empenho de Waters de levantar reflexões reais em qualquer lugar do mundo. Além disso, visualmente a apresentação foi um acontecimento em cada detalhe: animações, imagens e projeções de luz e lasers.
O cuidado também se estendeu ao som. A acústica do Mineirão não é a mais favorável para shows, mas a estrutura de turnê de Waters driblou isso pela segunda vez. Como em 2018, foram espalhadas caixas de som em pontos da arquibancada do estádio, o que solucionou o problema e ainda expandiu a imersão da experiência em músicas em que o som tem movimento.
Ainda na primeira parte, “The Bar”, teve seu espaço no repertório. Antes de tomar seu lugar no piano, o músico explicou o contexto da composição — inspirada em Bob Dylan — e defendeu a Palestina.
“Vamos tocar uma música agora que surgiu durante o Covid. Se chama ‘The Bar’. Vou explicar brevemente. Nós gostávamos de ir ao bar às vezes para tomar um drink, encontrar os amigos e às vezes para encontrar estranhos, e para conversar, algo que não podíamos fazer durante a covid. Então, para essa noite, a tampa desse piano – com vários copos como podem ver – é o bar. E esse estádio todo também é o bar, e todos vocês estão no bar conosco esta noite.”
Viagem à década de 1960
A história do Pink Floyd não ficou de fora da narrativa. Durante o ato do disco “Wish You Were Here” (1975) — “Have a Cigar”, “Shine On You Crazy Diamond” (partes 6 a 9) e a faixa-título —, os telões saíram de 2023 e foram para 1964, ano da fundação do grupo. Nesse ponto, o clima psicodélico tomou conta com a primeira citada, uma joia com solos muito bem executados.
Os guitarristas Dave Kilminster e Jonathan Wilson são um grande acerto. Preservam as melhores qualidades do trabalho de David Gilmour. Falando do arqui-inimigo de Waters, o vocalista e guitarrista foi apagado da história do Pink Floyd nesse ponto do show. Diversas fotos e vídeos da banda foram projetados nos telões, inclusive de fases posteriores à inicial… e nada de Gilmour.
A faixa-título do álbum também merece seu destaque. Antes de começar no violão o dedilhado clássico do hit, o músico contou — por meio de frases no telão — sobre como percebeu os primeiros sinais de demência em Syd Barrett. Amigos desde a infância e fundadores do Pink Floyd, o forte relato seguido de “Eu queria que você estivesse aqui” teve o potencial de fazer uma pedra chorar.
A segunda parte
Após um bem-vindo interlúdio, “In the Flesh” e “Run Like Hell” reanimaram o clima com direito a porco inflável e marcha dos martelos. Sem o polêmico traje usado nesse ato de “The Wall”, Waters adotou uma camisa de força e cadeira de rodas para passar pela ruína do personagem Pink.
Uma passagem breve por “Is This the Life We Really Want?” (2017) e chegamos ao ato de “The Dark Side of The Moon” (1973). A unidade característica de um álbum conceitual foi levada para o show a partir de “Money”. Com o loop inicial e um impecável solo de saxofone feito por Seamus Blake, o clássico foi executado até o fim catártico com “Eclipse” e a projeção do arco-íris feita com lasers.
O encerramento
O fim da execução do álbum foi suficiente para encerrar o rolê de boa parte do público que ainda em “Eclipse” começou a deixar o local. Quando Roger Waters pegou o microfone para falar de “Two Suns in the Sunset” — faixa de seu último trabalho com o Pink Floyd, “The Final Cut” (1983) — o fluxo de pessoas em zig zag cortou o clima. Mas de fato a posição da faixa dentro do repertório é questionável.
Por fim, “Outside the Wall” com a apresentação da banda encerrou a narrativa de três horas traçada por meio de música, texto, imagem e luzes.
No fim da experiência, o nome “This is Not a Drill” (Isso não é um treinamento) faz todo sentido. O repertório cuidadosamente costurado escancara que crises humanitárias, fascismo, guerras e perdas são realidade. E acima de tudo: evidencia que genialidade de Roger Waters ultrapassa o Pink Floyd e o tempo.
Setlist
- Comfortably Numb (versão 2022)
- The Happiest Days of Our Lives
- Another Brick in the Wall, Parte 2
- Another Brick in the Wall, Parte 3
- The Powers That Be
- The Bravery of Being Out of Range
- The Bar
- Have a Cigar
- Wish You Were Here
- Shine On You Crazy Diamond (Partes 6 a 9)
- Sheep
- Início do segundo ato – In the Flesh
- Run Like Hell
- Déjà Vu
- Déjà Vu (reprise)
- Is This The Life We Really Want?
- Money
- Us and Them
- Any Colour You Like
- Brain Damage
- Eclipse
- Two Suns in the Sunset
- The Bar (reprise)
- Outside the Wall
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