Quando Sinéad O’Connor desafiou a Igreja Católica — e perdeu sua carreira

Cantora chamou atenção para os abusos sexuais cometidos por padres em apresentação no “Saturday Night Live”

A noite de 3 de outubro de 1992 entrou para a história da TV mundial. A cantora irlandesa Sinéad O’Connor, falecida nesta quarta-feira (26) aos 56 anos, iria se apresentar no “Saturday Night Live”, um dos maiores programas de TV dos Estados Unidos. À época, ela promovia seu terceiro disco de estúdio, “Am I Not Your Girl?”.

Contudo, ao invés de cantar um de seus singles, Sinéad resolveu fazer um protesto que praticamente acabou com sua carreira. Décadas depois, parte do público finalmente entende suas razões, mas ainda existe uma imagem infeliz da cantora como “louca” por fazer aquilo.

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Subterfúgios

O episódio do “Saturday Night Live” de 3 de outubro de 1992 teve uma semana conturbada, mas nada disso teve a ver com O’Connor. O anfitrião daquela semana era o ator Tim Robbins, promovendo a sátira política “Bob Roberts”.Eleestava testando a paciência do chefão do programa, o produtor Lorne Michaels, ao propor uma esquete criticando a General Electric por suas práticas poluidoras do meio ambiente.

A General Electric era na época a principal acionista da NBC, rede de televisão onde o “Saturday Night Live” passa até hoje nos EUA. Então, como observado pelo Ultimate Classic Rock, a ideia de uma esquete criticando a multinacional criou um mal-estar.

Por outro lado, tudo na preparação de Sinéad O’Connor para o programa havia corrido tranquilamente. A cantora chegou no Rockefeller Center para os ensaios musicais e, após cantar a faixa “Success Has Made a Failure of Our Home”, um hit country de Loretta Lynn lançado em 1962, ela pediu ao diretor musical do programa, John Zonars, se poderia fazer mudanças no segundo número.

O plano original era que ela cantasse uma versão a capella de “Scarlett Ribbons”, uma canção natalina tradicional americana. Contudo, seu desejo agora era fazer um cover de “War”, escrita por Bob Marley, como um apelo mundial contra abuso infantil. 

Sinéad também pediu para a câmera lhe filmar em close o tempo inteiro, pois ela iria mostrar a foto de uma criança brasileira morta pela polícia. No livro “Live from New York”, que conta a história do programa, Zonars contou que todos na plateia, elenco e equipe ficaram emocionados pelo gesto da cantora em prol dos mais vulneráveis.

Era tudo um disfarce. Na hora da apresentação ao vivo, a foto exibida por Sinéad O’Connor não foi a da criança, e sim do Papa João Paulo II. Ela descreveu o desenrolar de seu plano em seu livro de memórias “Rememberings”:

“Eu canto ‘War’ a capella. Ninguém suspeitou nada. Mas no final, eu não mostrei a foto da criança. Eu mostrei a foto de João Paulo II e então a rasguei em pedaços. Eu gritei: ‘lutem contra o verdadeiro inimigo!’.”

O protesto de Sinéad O’Connor era relacionado a um assunto vindo à tona na Irlanda e que demoraria quase uma década para ser exposto nos Estados Unidos: abuso sexual cometido por padres católicos e o sistema criado pela Igreja Católica para acobertar esses crimes.

No documentário “Nothing Compares” (via Billboard), O’Connor explicou a razão pela qual fez o gesto:

“Eu tinha lido um artigo sobre famílias que haviam tentado prestar queixas contra a Igreja por abuso sexual, e elas estavam sendo silenciadas. Basicamente tudo que eu havia sido criada para acreditar era uma mentira.”

O’Connor então apagou as velas ao seu lado e escuridão caiu sobre o palco e um silêncio horrorizado pela plateia. O sinal luminoso de aplausos foi ordenado a ficar desligado por Lorne Michaels.

A reação

A NBC recebeu 500 ligações no domingo sobre a apresentação – e mais 400 na segunda. Apenas sete delas elogiaram o gesto de Sinéad O’Connor. A imprensa caracterizou o ocorrido como blasfêmia e heresia, pintando a cantora como uma pessoa desequilibrada.

O anfitrião do programa na semana seguinte, Joe Pesci, ergueu a foto, reconstruída com fita adesiva durante seu monólogo de abertura, para aplausos da plateia. Ele também disse que teria batido em O’Connor se estivesse no programa naquele dia.

Três semanas após o ocorrido, a cantora estava marcada para se apresentar no Madison Square Garden em um tributo aos 30 anos de carreira de Bob Dylan. Confrontada com vaias e insultos antes mesmo de começar sua performance, ela pediu para aumentarem o volume de seu microfone, e cantou “War” novamente, aos berros – e parando na parte sobre abuso infantil, como fez no “Saturday Night Live”.

Madonna, católica de criação, deixou seu lado polêmico de lado para criticar O’Connor no Irish Times (via New York Times):

“Acho que existe uma maneira melhor de apresentar suas ideias ao invés de rasgar uma imagem que significa muito para outras pessoas. Se ela é contra a Igreja Católica e tem um problema com ela, acho que ela deveria falar sobre isso.”

O mesmo texto do New York Times, escritou por Jon Pareles em 1992, criticou a postura de Madonna:

“Depois que Madonna se produziu toda e depois se despiu para promover seu álbum ‘Erotica’ e seu livro ‘Sex’, O’Connor roubou os holofotoes com uma foto de um homem vestido. Mas essa vilanização de O’Connor mostrou que ela havia acertado um nervo.”

Nove anos após esse episódio de “Saturday Night Live”, o Papa João Paulo II admitiu publicamente o papel da Igreja Católica no acobertamento de abusos sexuais cometidos por padres e missionários.

Sinéad O’Connor foi banida de se apresentar no “Saturday Night Live” e excomungada da Igreja Católica. Converteu-se ao islamismo. Sua carreira nunca se recuperou e ela mesma pareceu fragilizada pelo resto da vida pela reação do público ao seu protesto. Nem o tempo a provando correta mudou a impressão geral sobre ela.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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