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A curiosa história do Milli Vanilli, a maior farsa da música pop

Produtor alemão se apropriou de canção rap americana e montou um grupo falso com dois jovens dançarinos sem noção

Hoje em dia, o papo em torno de lip sync se tornou quase banal. Performances de artistas pop se tornaram tão elaboradas que faixas vocais pré-gravadas passaram a ser padrão para a indústria musical ao invés do bicho papão de antigamente. Na época do Milli Vanilli, não era bem assim.

A história dessa dupla é uma das mais fascinantes na música em todos os tempos. Em uma análise inicial, eles podem ser caracterizados como farsas, estelionatários que enganaram seus fãs ao se apresentarem como cantores quando eram apenas dançarinos fingindo cantar. 

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Por outro lado, dá para entender que o projeto inteiro é uma sátira feroz do conceito de autenticidade musical em si. Nele, um produtor alemão pegou uma música de rap americana, injetou uma dose cavalar de pop europeu cafçona na esperança de ter um hit cínico e se viu como o criador de um dos atos mais populares do mundo no ano de 1990.

Apropriação cultural, exploração de trabalho, gravadoras cúmplices em tudo e dois dançarinos no final sendo obrigados a aguentar todos os efeitos negativos da história.

O Milli Vanilli tinha todos os ingredientes para fazer história e infâmia. E assim o fez.

Frank Farian e o pop canalha

Tudo começa com Frank Farian, um ex-cozinheiro que entrou para o mundo da música no final dos anos 1960. Ele alcançou sucesso em 1974, com o grupo disco Boney M, que oferecia uma repaginação do clássico ska “Al Capone”, rebatizada como “Baby Do You Wanna Bump”.

Apresentado ao público como sendo formado pela modelo Maizie Williams, o ex-dançarino exótico Bobby Farrell e as cantoras Marcia Barrett e Liz Mitchell, o grupo no estúdio era na realidade formado por Barrett, Mitchell e o próprio Farian, responsável por gravar as partes masculinas de canções como “Gotta Go Home” – que adquiriu segunda vida nos anos 2010 ao ser sampleada em “Barbra Streisand”, hit do Duck Soup – o cover de “Sunny” e o clássico das pistas “Rasputin”.

Os anos 80 não foram gentis com o Boney M. A disco music estava em decadência e os três álbuns lançados pelo grupo na década foram verdadeiros fracassos, especialmente comparados aos lançamentos de poucos anos antes. 

Em 1985, após oito álbuns e um crescente desinteresse de Farian, o grupo terminou. O produtor estava entediado. A fórmula de sucesso cafajeste que deu certo nos anos 70 parou de dar certo – e ele estava atrás de uma nova moda para poder se aproveitar.

A moda perfeita foi localizada após ele escutar em uma boate alemã o single “Girl You Know It’s True”, do grupo de rap americano Numarx, lançado em 1987. Na hora as máquinas começaram a operar na cabeça dele: pegar a vibe hip hop da canção e adicionar doses de eurodance para conseguir um hit crossover.

Em 2019, num post feito em seu Facebook oficial, Farian resumiu sua mentalidade ao ouvir a música:

“Essa é uma grande canção… mas eu posso fazer isso melhor.”

Em entrevista à Billboard, a vocalista Linda Rocco, que aparece em “Girl, You Know It’s True” e em lançamentos subsequentes do grupo, descreveu como a abordagem de Frank Farian era parte de seu método canalha.

“Ele queria refazer a canção, algo que ele sempre estava fazendo: juntando um cantor e botando uma imagem naquilo e depois jogando pra cima pra ver se voa.”

No caso do Milli Vanilli, o cantor na verdade foram vários: além de Linda Rocco e sua irmã Jodie, havia o rapper Charles Shaw, John Davis e Brad Howell. O nome do grupo veio de um apelido carinhoso dado por Farian para sua namorada. Só faltava a imagem – e ficou faltando mesmo após o lançamento do single.

“Girl, You Know It’s True” acabou se tornando um hit na Inglaterra e na Alemanha, chamando a atenção da gravadora Arista nos Estados Unidos, comandada por Clive Davis. Frank Farian tinha uma possível mina de ouro nas mãos e precisou se movimentar para encontrar dois rostos para o projeto.

À Billboard, Charles Shaw contou sobre como sigilo sobre a farsa já estava se tornando uma preocupação para Farian:

“Farian voltou depois que a música apareceu nas paradas inglesas e disse que ele precisava de duas faces para o projeto. Eu já havia recebido US$ 12 mil por ter feito ‘Girl’ e disse: ‘fica de boca fechada e você pode fazer o disco todo’. E eu pensando: ‘é trabalho de estúdio pra mim’.”

Enquanto a equipe de músicos, compositores e vocalistas empregada por Farian estava trabalhando em ritmo alucinado para terminar o disco, o produtor tentava encontrar os dois rostos, o ingrediente faltando. Ele achou na figura de dois dançarinos e cantores: Fab Morvan e Rob Pilatus.

Negros na Europa

Fab Morvan e Rob Pilatus se conheceram num seminário de dança em Munique e ficaram amigos. Em entrevista ao Los Angeles Times, em 1989, Pilatus resumiu o que os aproximou:

“Algo clicou entre a gente. Talvez seja porque ambos somos homens negros que cresceram em cidades estrangeiras que não tem muitos negros.”

Enquanto Morvan nasceu na França, filho de imigrantes vindos da ilha caribenha de Guadalupe, Pilatus era o fruto da união entre um soldado americano negro e uma dançarina alemã.

Após um tempo separados, os dois se juntaram em Munique numa tentativa de fazer sucesso como uma dupla de cantores. Lançaram um disco por uma gravadora pequena na Alemanha, mas as vendas foram baixas.

À Billboard, Jodie Rocco fala sobre conhecer Rob Pilatus e sua impressão a respeito dos talentos musicais da dupla:

“Eu conhecia Rob há anos — ele dançava nos eus shows e eu conhecia ele da boate P1 em Munique, onde morei por 14 anos. Eu vi Rob lá e ele disse: ‘sou um dançarino e estou tentando [ser cantor]’, mas eles nunca foram cantores, nunca foram.”

Nessa época, ambos estavam vivendo em complexos de habitação públicos, sem dinheiro. Quando Frank Farian entrou em contato para irem até Frankfurt assinarem com ele, a decisão foi fácil, como Pilatus falou ao Los Angeles Times em 1990, mesmo com a oferta sendo suspeita:

“Nós recebemos uma chamada para ir no estúdio dele e dissemos: ‘é isso aí, é agora’. Nós éramos garotos burros, então dissemos: ‘vamos’. Quando chegamos no estúdio, ‘Girl You Know It’s True’ era apenas uma demo e ele pediu nossa opinião sobre, perguntou se poderíamos cantá-la, e dissemos: ‘sim, podemos cantar.’ Aí ele falou: ‘claro, eu acredito, mas semana que vem temos shows para fazer, então não se preocupe; vou te fazer um milionário’.”

Tobias Freund, engenheiro de som do primeiro disco do Milli Vanilli, resumiu as contribuições musicais de Morvan e Pilatus também em entrevista à Billboard:

“Eles [Rob e Fab] não gravaram nada… eles fizeram uns backing vocals, mas não eram utilizáveis. Eles falavam inglês, mas Fabrice falava mais francês e Rob era alemão. A opinião do Frank era que eles não eram bons o suficiente para ele, mas eles encaixavam perfeitamente na música e no visual.”

O subterfúgio do Milli Vanilli

Enquanto o disco de estreia do Milli Vanilli estava sendo gravado em Frankfurt, havia um enorme grau de segredo sendo guardado. Fab Morvan e Rob Pilatus iam todo dia aos estúdios, mas eram relegados às áreas de lazer e não podiam fazer contato com o resto da equipe. Executivos da Arista eram impedidos de acompanhar as sessões.

Enquanto isso, os vocalistas sendo usados para as gravações precisavam ser contrabandeados para dentro do estúdio, como Tobias Freund contou à Billboard:

“Quando o grupo decolou, Frank me falou uma vez que eu não deveria falar para ninguém sobre aquilo. O cantor verdadeiro [Brad Howell] estava morando perto de mim em Frankfurt, então eu precisava buscá-lo à noite, depois que as secretárias do estúdio tinham ido embora. Nós trabalhávamos de noite para ninguém ver. Era um segredo. Trabalhávamos de noite e fechando as janelas.”

Mesmo assim, isso não impedia pessoas fora do círculo sigiloso de perceber a farsa sendo armada. Robert Wieger, ex-product manager da Arista, afirmou ter percebido cedo:

“Eu percebi o esquema bem cedo, provavelmente na filmagem do clipe de ‘Blame It on the Rain’. Eles tinham dificuldade de lembrar a letra, que me fez pensar talvez não terem gravado a canção. ‘O que está acontecendo aqui?’ Era algo que não estava sendo discutido, pra ser honesto, mas definitivamente estava sendo discutido a portas fechadas.”

O primeiro disco do Milli Vanilli, “All or Nothing”, foi lançado na Europa em novembro de 1988. Uma versão do álbum nos Estados Unidos era iminente. Os dois dançarinos se viram numa posição de não ter como sair da conspiração, como Pilatus falou ao Los Angeles Times em 1990:

“Depois que Frank lançou o disco, ele nos falou que era tarde demais para parar. Porque o single tinha sido um sucesso tão grande, daí ele disse: ‘agora vocês precisam continuar, vou cobrir a barra pra vocês, ninguém vai descobrir’. Ele disse: ‘aqui, eu vou te dar US$ 20 mil de dinheiro adiantado’. Nunca tivemos um hit antes, então fomos junto no embalo. Brincamos com fogo e agora sabemos, mas é tarde demais agora.”

O álbum “All or Nothing” foi renomeado e repaginado como “Girl You Know It’s True”, mesmo nome do hit, nos Estados Unidos. Apesar de impressões iniciais que o grupo seria apenas um one-hit wonder, a estreia americana rendeu cinco singles no top 5 da Billboard, três deles atingindo a primeira posição.

O álbum acabou vendendo mais de seis milhões de cópias na América, passando sete semanas no topo das paradas e 41 semanas no top 10. O Milli Vanilli era um sucesso esmagador, a ponto de bater nomes como Neneh Cherry e Indigo Girls para receber o Grammy de Artista Revelação em 1990.

A essa altura, porém, a casa já estava caindo.

Acidente de playback

Durante uma apresentação para a MTV em 21 de julho de 1989, uma falha no equipamento fez a gravação de “Girl You Know It’s True” travar. Apesar da plateia não ter notado ou ligado para a falha técnica, Rob Pilatus disse ao Los Angeles Times ter visto ali o início do fim do grupo.

“Eu sabia ali mesmo, era o começo do fim do Milli Vanilli. Quando a minha voz ficou presa no computador e ficou repetindo e repetindo, eu entrei em pânico. Não sabia o que fazer. Simplesmente corri pra fora do palco.”

Note na fala de Pilatus o uso de “minha voz”. Uma acusação recorrente ao longo dos anos contra ele e Morvan por parte dos outros membros da farsa é como ambos deixaram o sucesso subir à cabeça antes de tudo vir abaixo, se considerando os verdadeiros talentos por trás do grupo.

O primeiro grande golpe dado contra a credibilidade pública do projeto foi em dezembro de 1989, quando Charles Shaw revelou Fab Morvan e Rob Pilatus como impostores. O rapper fez isso após e ele, Davis e Howell terem sido deixados de fora dos créditos da versão americana de “Girl You Know It’s True”, que atribuiu os vocais masculinos aos dois dançarinos.

Shaw desmentiu a si mesmo logo depois. A Entertainment Weekly alega que ele o fez após receber US$ 150 mil de Frank Farian. Contudo, isso não adiantou para acabar com os rumores.

Acidentes de playback eram frequentes em turnê. A farsa havia se tornado o segredo mais mal-guardado do pop quando venceram o Grammy de Artista Revelação. Os dois chegaram a se apresentar na cerimônia, fazendo lip sync na frente de todo mundo.

O mundo descobre de vez

A esse ponto, Fab e Rob estavam cansados da farsa e queriam se estabelecer como cantores de fato. Ao tentarem bater o pé com Farian, foram demitidos na hora, com o produtor admitindo publicamente o engodo.

A reação pública foi feroz – e mirada apenas nos dois dançarinos. Nada contra Farian, ou contra Clive Davis e a Arista, que a esse ponto não estavam apenas a par da farsa, mas haviam se tornado cúmplices ativos. Em entrevista ao Yahoo, Fab Morvan falou sobre como foi injusto direcionarem todo o ódio apenas neles:

“[Farian] é a pessoa que criou tudo, juntou tudo. E no final, porque não queríamos continuar com tudo aquilo, aí ele foi pra Nova York e contou pro mundo. Nos sentimos como se estivéssemos sendo abandonados por todo mundo. Foi assim que nos sentíamos, porque quando a notícia saiu, nós éramos o foco de todo mundo. Mas o fato é que tinha muita gente envolvida com o projeto. Nós fomos traídos por muita gente.”

Na mesma entrevista, Morvan disse que a Recording Industry Association of America (RIAA) não pediu o Grammy de volta. Foi iniciativa dele e de Pilatus devolver, como sinal de contrição:

“Sempre existiu um mal-entendido sobre quem queria o Grammy de volta… no começo nós falamos: ‘ok, queremos devolver porque achamos que é a coisa certa a se fazer’. Mas na imprensa, sempre acaba que nós ‘tivemos’ que devolver. O Grammy estava na nossa casa. Poderia ter permanecido na nossa casa. Mas nós fizemos a escolha de devolver.”

Em novembro de 1990, na mesma coletiva em que ofereceram devolver seus Grammys, Morvan e Pilatus se apresentaram com suas próprias vozes para os mais de 100 jornalistas presentes, numa tentativa de mostrar serem genuinamente talentosos, porém implicados numa rede de mentiras por Frank Farian.

Em meio a processos, ofertas de reembolsos a consumidores e retratações públicas, a Arista removeu “Girl You Know It’s True” de seu catálogo. Foi um dos álbuns mais bem-vendidos da história a receber esse tipo de tratamento.

Desdobramentos do Milli Vanilli

Frank Farian ainda assim tentou se aproveitar da situação lançando o que seria o segundo disco do grupo sob o nome de The Real Milli Vanilli e o título “The Moment of Truth” (1991). Não deu certo. Fab Morvan e Rob Pilatus tentaram a sorte sozinhos com o projeto Rob & Fab, que rendeu um álbum lançado em 1993, e também fracassaram por terem se tornado piadas mundiais.

Em 1997, Farian concordou em produzir um disco dos dois, uma última tentativa de reabilitar suas imagens. Alguns dos vocalistas participantes do Milli Vanilli se juntaram ao projeto, tentando recobrar sua fama. 

Entretanto, nessa época Rob Pilatus estava passando por diversos problemas pessoais relacionados ao vício de drogas e outros tipos de crimes. Na véspera do início da turnê promocional de “Back and In Attack”, a grande volta por cima, Rob foi encontrado morto, vítima de uma overdose acidental de álcool e remédios controlados.

Desde então, Fab Morvan e os outros vocalistas do Milli Vanilli passaram os anos tentando reabilitar sua própria imagem e o legado do grupo. Morvan, inclusive, lançou álbuns e segue fazendo shows até os dias de hoje. Um dos cantores originais do projeto, John Davis, faleceu de Covid-19 em 2021.

Frank Farian conseguiu, de certo modo, sair ileso da história graças ao seu passado com o Boney M, que apesar de ser a planta para o Milli Vanilli, é mais bem-visto porque duas das integrantes realmente cantavam nas músicas.

No final, o produtor se deu bem, enquanto vários artistas não-brancos tiveram suas carreiras negativamente afetadas para o resto de suas vidas. Um deles, infelizmente, não está mais entre nós.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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