Em 7 de janeiro de 2020, Neil Peart, lendário baterista do Rush, nos deixava. O mundo descobriu apenas no dia 10, quando uma nota oficial anunciava que um glioblastoma, tipo de câncer no cérebro, havia ceifado a vida do músico.
Um artigo publicado pelo site da revista ‘Rolling Stone‘, em sua versão em inglês, dissecou os anos finais de Neil Peart com diversos relatos de pessoas próximas. A esposa do músico, Carrie Nuttall, e seus colegas de banda, Geddy Lee (voz/baixo) e Alex Lifeson (guitarra), falaram sobre como Peart conduziu seu último período de vida.
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O fim do Rush
Fora os próprios músicos, ninguém sabia que o Rush se aposentaria após a turnê ‘R40’, que celebrava, em 2015, os 40 anos de banda – ou melhor, os 40 anos de Neil Peart na formação, já que o grupo acumulava ainda mais tempo de estrada.
A tour foi concluída e por meio de entrevistas, somente algum tempo depois, descobrimos que o Rush não iria voltar. O “culpado” era o próprio Neil Peart, que alegava falta de aptidão física para seguir em turnê. O músico se queixava de dores nas costas, entre outros problemas naturais para quem passou décadas no banquinho da bateria.
Na época, com 63 anos, Peart abandonou o Rush, mas planejava seguir como escritor. Apaixonado por literatura, ele era o responsável pelas letras das músicas da banda e já havia lançado alguns livros.
O músico também seguia lidando com algumas de suas paixões, como carros antigos e motocicletas, e estava cada vez mais próximo de uma vida pacata, em família, com sua esposa Carrie Nuttall e sua filha Olivia, nascida em 2009.
Desde o fim de 2015, aliás, o músico estava atuando como voluntário na biblioteca da escola onde Olivia estudava. O relato é de Carrie:
“Ela (Olivia) via o pai na escola o tempo todo. À noite, ele vinha para casa e cozinhava o jantar. Pela primeira vez em décadas, ele estava vivendo a vida exatamente como que queria, provavelmente. Foi um período muito feliz. Então os deuses, ou quem quer que sejam, estragaram tudo.”
O diagnóstico
Infelizmente, Neil Peart foi diagnosticado com glioblastoma, um tipo agressivo de câncer no cérebro. Ele soube da doença em agosto de 2016, cerca de três anos e meio antes de seu falecimento. Os sintomas já estavam aparecendo: Neil tinha dificuldades para completar suas palavras cruzadas e até para conversar.
Os médicos deram apenas 12 a 18 meses de vida ao baterista. Ele superou essa expectativa em mais de dois anos, no fim das contas, e nunca desistiu de lutar contra a doença.
Peart sabia que não teria tanto tempo de vida, então, passou a aproveitar a vida do jeito que queria. Seguiu andando de motocicleta e aproximou-se ainda mais da filha. Contou sobre a doença para Geddy Lee e Alex Lifeson, de quem se manteve próximo até o fim, e pediu segredo.
Alex Lifeson comenta:
“Ele queria estar no controle. A última coisa que ele queria era pessoas na calçada ou na garagem da casa dele cantando ‘Closer to the Heart’ ou algo assim. Ele não queria atenção. Era difícil mentir para as pessoas ou desviar esse assunto de alguma forma.”
Geddy Lee completa:
“Ele não queria perder o tempo de vida que lhe sobrava falando sobre coisas desse tipo. Ele queria se divertir com a gente. Ele queria falar sobre coisas reais, até o fim da vida […] Fico triste por ele ter tido tão pouco tempo para aproveitar o que ele lutou tanto para ter.”
Os relatos apontam que Neil Peart, de fato, jamais desistiu de batalhar contra o câncer, embora tenha lidado com a notícia com relativa conformidade. Ele sabia qual era o destino dele.
Lee relembra:
“Ele foi muito estoico. Aquele homem era durão. Ele estava chateado, obviamente, mas ele teve que aceitar tantas coisas horríveis. Ele aceitou muito bem e estava bem com isso. Faria o possível para permanecer vivo o máximo que pudesse, pelo bem de sua família. E ele se saiu incrivelmente bem. Ele aceitou seu destino, certamente de modo mais gracioso do que eu.”
O racionalismo de Peart tinha motivo. Em 1997, ele perdeu Selena Taylor, sua única filha até então, em um acidente de carro. A jovem tinha apenas 19 anos. No ano seguinte, sua então esposa, Jacqueline Taylor, faleceu devido a um câncer, tendo somente 42 anos de idade.
Essas tragédias quase acabaram com a carreira do baterista, que pensou em nunca mais voltar para o Rush – que, claro, acabaria sem ele. A banda precisou tirar um longo hiato, voltando apenas em 2002.
Por isso, Neil era tão consciente de seu destino e parecia aceitar o que estava por vir. Entretanto, claro, o baterista sentia-se frustrado – especialmente por deixar sua filha Olivia para trás.
Carrie Nuttrall comenta:
“Ele ainda queria fazer muitas coisas. As pessoas perguntam se ele simplesmente aceitou o destino dele. Sim, ele aceitou, mas isso partiu o coração dele.”
Satisfação com a própria obra
Neil Peart não era o tipo de cara que costumava olhar para trás. Ele, inclusive, evitava ouvir seus trabalhos mais antigos com o Rush. Estava sempre de olho no futuro.
Com o diagnóstico de câncer, automaticamente, isso se reverteu. O baterista passou a olhar com carinho para todas as obras que deixou com sua banda. Dezenas de álbuns, entre gravações de estúdio e ao vivo, que moldaram o caráter de milhões de fãs pelo mundo.
Alex Lifeson afirma:
“Não acho que nenhum de nós ouve nossas próprias músicas antigas. Já está feito. Porém, acho que ele estava revisando algumas de suas conquistas, em termos musicais. E acho que ele ficou surpreso com o quão bom tudo aquilo era. Isso acontece, você meio que se esquece. Era interessante vê-lo sorrindo e feliz com isso. Quando ele ainda podia escrever para a gente, ele falava sobre como ficava bem ao ouvir as músicas antigas.”
Geddy Lee declara:
“Conhecendo Neil como conheço e sabendo que ele sabia o pouco tempo que lhe restava, acho que foi natural ele revisar o trabalho de sua vida. Ele estava se sentindo muito orgulhoso de seus feitos e queria compartilhar isso com Alex e eu. Sempre que o víamos, falávamos sobre isso. Ele queria que soubéssemos que ele tinha orgulho.”
Lucidez até o fim
O lendário músico do Rush permaneceu lúcido até semanas antes de morrer. Em setembro de 2019, para celebrar seu aniversário de 67 anos, ele chegou a dar uma festa por conta própria, na intenção de reunir seus amigos e familiares. Ele também seguiu andando de moto, porém, com o auxílio de outras pessoas.
Apesar dos boatos, todos os amigos entrevistados pela revista garantem que o músico não viveu seus últimos anos em cadeira de rodas ou incapaz de falar. Sua rotina foi mantida até as suas últimas semanas.
Vale destacar que entre o fim de 2018 e início de 2019, um ano antes do óbito, o câncer de Neil Peart entrou em remissão. Era um indicativo de que ele poderia ter mais tempo de vida.
O último encontro entre os três caras do Rush aconteceu na casa de Neil, junto de sua esposa, Carrie Nuttall.
Alex Lifeson relembra:
“Nós rimos muito naquela noite. Contávamos piadas e relembrávamos diferentes shows e turnês, além de membros da equipe de turnê e tudo o que sempre fazíamos em camarins ou ônibus. Parecia tão natural, tão certo, tão completo.”
Fora o grande legado na música e os vários amigos que fez, Neil Peart enxergava Olivia como tudo o que tinha. E ele a incentivou de todas as formas para que ela seguisse os passos do pai, como baterista.
Peart, de fato, não tocou mais bateria desde o último show do Rush. Nem mesmo em casa. Porém, ele chegou a montar um kit de bateria para Olivia na sala de estar da casa onde moravam.
Carrie Nuttral conta:
“Neil disse imediatamente que ela tinha o mesmo dom que ele. Isso o empolgou. Ele se esforçou muito para que ela não se sentisse intimidada por ele. Ele não ficava lá sentado olhando para ela enquanto ela aprendia a tocar. Ele ficava fora de vista, mas ouvindo o que ela fazia.”
Com a morte de Neil Peart, o Rush acabou. Não só a banda, como também, ao que tudo indica, as carreiras de Geddy Lee e Alex Lifeson na música.
O guitarrista afirma:
“Amo tocar e nunca quis parar, sempre dizia que tocaria até morrer. Mas isso se foi. Após ele nos deixar, não parecia ter importância. Porém, acho que essa vontade vai voltar.”
O vocalista e baixista destaca:
“Por muito tempo, não tive vontade de tocar. Ainda sinto que há música em mim e em Al, mas não há pressa.”
O artigo da Rolling Stone, em inglês, pode ser conferido na íntegra no site da revista.
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