O KISS entrou na década de 1980 necessitando, urgentemente, de uma renovação. Em termos comerciais, o mergulho no pop com “Unmasked” (1980) e a tentativa de se fazer um disco conceitual com “(Music From) The Elder” (1981) não deram certo. Nem mesmo a volta às raízes – acrescida de uma pegada quase heavy metal – proposta por “Creatures Of The Night” (1982) garantiu o retorno do grupo ao seu auge, ainda que este seja um grande trabalho.
Na mídia, integrantes e ex-músicos do KISS estavam mais presentes nos tabloides, direcionados a fofocas de celebridades, do que em publicações direcionadas a música. As múltiplas namoradas do vocalista e baixista Gene Simmons, os excessos amorosos do cantor e guitarrista Paul Stanley e as extravagâncias do ex-baterista Peter Criss deixavam a banda em evidência para o público errado.
As vendas baixas, as turnês esvaziadas nos Estados Unidos e a consequente demissão do empresário Bill Aucoin, responsável por descobrir e apostar no KISS em seus primórdios, demonstravam que a renovação era necessária. Como não adiantava mudar o som, foi preciso apelar para a imagem, algo tão forte na trajetória do grupo.
Em 1983, mais precisamente no dia 18 de setembro, o KISS apareceu pela primeira vez sem suas maquiagens. A revelação dos rostos foi feita durante um programa da MTV americana, no mesmo dia em que o 11° disco da banda, “Lick It Up”, era lançado.
Os músicos surgiram de cara limpa sem muito glamour, visto que somente dois músicos da formação original seguiam presentes: Paul Stanley e Gene Simmons. No momento, a dupla contava com o baterista Eric Carr e o guitarrista Vinnie Vincent.
Ainda que a aparência fosse inédita, o KISS não havia mudado tanto musicalmente, se comparado a “Creatures Of The Night”. No geral, “Lick It Up” segue a fórmula hard/heavy apresentada por seu antecessor, ainda que seja um pouco mais hard do que heavy. Duas características o diferenciam de “Creatures”: é um álbum mais homogêneo, pois as guitarras solo foram gravadas somente por Vinnie Vincent (e não por diversos convidados), e, curiosamente, um pouco menos inspirado.
O planejamento para o “novo KISS” – ao menos em termos de imagem – ficou mais evidente depois que a banda fez seu primeiro show sem máscaras e fantasias típicas. O grupo, que havia encerrado a turnê que divulgou “Creatures Of The Night” no Brasil, voltou aos palcos menos de quatro meses depois, no dia 11 de outubro de 1983, em outro país lusófono: Portugal. A performance ocorreu no Pavilhão Dramático de Cascais, em Lisboa.
Os registros presentes na internet e até em filmagens oficiais mostram que, visualmente, tratava-se de outra banda. Para o bem e para o mal.
É visível que Paul Stanley ficou mais confortável fora da persona de Starchild. Sem as máscaras e os trajes que notabilizaram o KISS nos anos anteriores, Stanley passou a imagem mais integral de cantor e músico, em sua plenitude, e não só um entertainer. Arriscou-se mais nos vocais e controlou melhor a plateia.
Gene Simmons, por sua vez, ficou perdido. A persona de Demon dava a perspectiva que precisava para se destacar no KISS. O personagem tinha diversas associações com o que rolava no show: ele cuspia fogo e sangue, mostrava a língua, transitava pelo alto do palco por meio de uma plataforma e cantava músicas como “God Of Thunder”, feitas para o Demon, mas não exatamente para Simmons.
O momento de maior perdição deste show é quando Gene Simmons resolve fazer o número em que cospe sangue e canta “God Of Thunder”. Não há registros no YouTube, mas bootlegs captaram o momento – assim como todo o show, diferente do que é mostrado no DVD “Kissology 2”, que só conta com a performance de duas músicas.
Em “God Of Thunder”, Gene Simmons se apresenta tão deslocado que ele mesmo reconheceu que não funcionaria: a música foi retirada do repertório da turnê e substituída por “Young And Wasted”. Ela não foi tocada até a turnê de “Hot In The Shade”, já em 1990. O número com sangue, por sua vez, não foi repetido até a reunião da formação original, em 1996.
Outros atos e trejeitos foram abandonados por Gene Simmons com o tempo, ao longo da fase sem máscaras. A exibição de sua enorme língua foi a que mais demorou para ser deixada de lado: somente na turnê de “Revenge”, em 1992, Gene deixou de mostrá-la, por recomendação, se não me engano, do produtor Bob Ezrin. Aliás, foi no disco dessa tour que Simmons, enfim, completou sua transição artística de Demon para ele próprio – e, claro, foi aí que obteve o seu melhor resultado.
Eric Carr, como de costume, se apresentou bem à situação que lhe foi proposta. Vinnie Vincent também se destacou nas performances, ainda que exagerasse muito na “fritação”. Infelizmente, a relação do guitarrista com a banda começou a azedar já no início da turnê. Ele foi demitido após o fim da parte europeia, em novembro de 1983. O KISS não encontrou nenhum substituto a tempo e precisou recontratá-lo no fim de dezembro, para a perna americana da tour. Vincent foi, enfim, dispensado em definitivo em março de 1984.
Ainda que Stanley, Carr e Vincent tivessem se destacado em alguns pontos, o saldo geral mostrava que o KISS não sabia muito bem por qual caminho seguir – e não era só culpa de Simmons. Os músicos apostaram em uma pegada mais glam que não se refletia tanto no som, nem na presença de palco. Essa confusão seguiu até o fim da década de 1980 – a aparência do grupo só retomou certa sobriedade a partir das fotos promocionais de “Hot In The Shade”, em 1989.
No fim das contas, o KISS viveu por diversas turbulências na década de 1980 e isso se refletiu na performance comercial do grupo. Houve algum destaque com a retirada das máscaras, mas, com exceção de momentos isolados – como o bem-sucedido “Animalize” (1984) -, o “novo KISS” não repetiu os números de seu antigo apogeu. A própria turnê de “Lick It Up”, em sua sequência, teve momentos de oscilação: algumas apresentações ocorreram em teatros e casas de shows para 5 a 7 mil pessoas, bem diferente das médias obtidas nos anos 1970.
Falhas estratégicas à parte, o KISS não pecou por omissão. Não houve medo de errar nesse período: era isso ou dar fim à banda.
Veja o repertório tocado em Lisboa, Portugal, no primeiro show do KISS sem máscaras:
01. Creatures Of The Night
02. Detroit Rock City
03. Cold Gin
04. Fits Like A Glove
05. Firehouse
06. Solo de guitarra de Paul Stanley
07. Exciter
08. War Machine
09. Solo de bateria de Eric Carr
10. Gimme More
11. Solo de guitarra de Vinnie Vincent
12. Solo de baixo de Gene Simmons
13. God Of Thunder
14. I Love It Loud
15. I Still Love You
16. Love Gun
17. Black Diamond
Bis:
18. Lick It Up
19. Rock And Roll All Nite
* Escrevi esse texto originalmente para o Whiplash.Net Rock e Heavy Metal.