Quando o Iron Maiden anunciou, em 2015, o lançamento de seu décimo sexto álbum de estúdio, “The Book of Souls”, a expectativa entre os fãs era gigantesca — não apenas pelo hiato de cinco anos desde “The Final Frontier”, mas também pelo caráter histórico do novo trabalho. Seria o primeiro álbum duplo da carreira do Maiden, com mais de 90 minutos de música inédita, incluindo épicos grandiosos e, como de praxe, um mergulho em temas existenciais, espirituais e históricos.
O entusiasmo, no entanto, se misturava à apreensão. Nos bastidores, o vocalista Bruce Dickinson enfrentava uma dura batalha contra o câncer, fato que só seria revelado ao público meses depois.
Conheça a história.
Obsessão por mistérios e ancestralidade
A ideia para “The Book of Souls” começou a tomar forma ainda durante a turnê de “The Final Frontier”, em 2011. Apesar de ter afirmado no passado que o Iron Maiden não passaria dos quinze álbuns de estúdio, Steve Harris, baixista e líder criativo do grupo, sentia que a banda ainda tinha muito a dizer.
O conceito se desenvolveu em torno de temas como a mortalidade, a transcendência e o misticismo. “À medida que você envelhece, começa a pensar mais sobre essas coisas”, explicou Harris à Metal Hammer.
A escolha do título — “O Livro das Almas”, em português — reflete esse pensamento. Nesse contexto, a civilização maia surge como fio condutor estético e simbólico. Embora não saiba ao certo o motivo, Bruce Dickinson contou à Classic Rock que Harris desenvolveu um fascínio pela cultura ancestral da Mesoamérica:
“Daí ele pensou: ‘Vamos chamar de ‘The Book of Souls’’. E eu disse: ‘Por mim, ok’. No fim das contas, ‘The Book of Souls’ soa mesmo como um título de álbum do Iron Maiden, não soa?”
Mas o álbum não se limita a um único tema. É uma verdadeira viagem por diferentes épocas e cenários. Fiel ao estilo da banda, as letras exploram um leque de referências históricas, filosóficas e espirituais.
Logo de cara, a faixa de abertura, “If Eternity Should Fail”, chama atenção. A canção sobre possessão nasceu originalmente para a carreira solo de Dickinson, mas acabou incluída no álbum. Bruce conta que a banda basicamente copiou o que ele e o guitarrista Roy Z haviam gravado como demo. “Na verdade, aquele pedacinho de teclado no começo sou eu, no quarto do Roy”, revela.
A narração no final da faixa seria, na verdade, o início da história de seu álbum solo, chegando a apresentar um dos personagens, o Doutor Necropolis.
“Perguntei ao Steve: ‘Faz diferença ter essa narração e depois nada mais [relativo à história] acontecer no resto do álbum?’ E ele respondeu: ‘Não, é sobre almas, encaixa perfeitamente’.”
Outra composição de Dickinson, “Empire of the Clouds”, se destaca como a música mais longa da história da banda, com impressionantes 18 minutos. Inspirada no trágico acidente do dirigível britânico R101, em 1930, a canção é quase uma minissinfonia dentro do álbum. O vocalista, que a compôs no piano, comenta:
“Quando você compõe no piano, ele simplesmente sugere coisas. Dava para ouvir cravos, sinos tubulares, tímpanos, tudo isso. E eu pensei: ‘Uau’. Então, sim: trompas — confere. Violoncelos — confere. Oboé — confere.”
O guitarrista Adrian Smith lembra-se do colega trabalhando exaustivamente na faixa durante as sessões de gravação:
“Estávamos gravando outras músicas e ele continuava sentado naquela cabine à prova de som, com o ouvido colado ao piano, como Beethoven, trabalhando em sua obra-prima. [Risos.]”
Embora admita ter pedido a Bruce para não “viajar demais”, Steve concorda com a definição de Adrian:
“Acho que é mesmo uma obra-prima — e posso dizer isso porque não fui eu quem a compôs! Parece Maiden, mas é totalmente diferente de tudo o que já fizemos.”
Riffs, homenagens e uma dose de irreverência
Épicos à parte, a escolha do primeiro single recaiu sobre a divertida “Speed of Light”, cuja origem Bruce Dickinson contou à Spin:
“Adrian escreveu o riff. Achei que parecia algo de ‘Burn’, do Deep Purple. Então, resolvemos homenagear o Purple com um grito no estilo Ian Gillan [vocalista] no início.”
Ao The Quietus, Adrian Smith destacou que ele e Bruce não compunham juntos há anos — a última parceria havia resultado em “The Wicker Man”, do álbum “Brave New World” (2000). “Então, sugeri: vamos fazer algumas músicas mais curtas, como ‘2 Minutes to Midnight’ ou ‘Can I Play with Madness’, que fizemos no passdo”, disse.
“Speed of Light” ganhou um videoclipe repleto de referências à iconografia do Iron Maiden — desde as poses dos personagens em momentos-chave até detalhes inseridos nos cenários — produzido por Llexi Leon. Criador da série de quadrinhos “Eternal Descent” e grande fã do Maiden, ele contou à Metal Hammer como o clipe surgiu:
“Parecia a combinação perfeita — 40 anos de exploração do metal, além de quatro décadas de videogames. Apresentei a ideia ao [empresário] Rod Smallwood e aos caras da banda. Eles adoraram e perguntaram se eu conseguiria executá-la. Imaginei: é o Iron Maiden, então eu tinha que executar, e tinha que ser a melhor coisa que já fiz.”
Além de “Speed of Light”, Bruce e Adrian compuseram “Death or Glory”, cuja letra aborda combates aéreos, desta vez da Primeira Guerra Mundial — ao contrário de “Aces High”, ambientada na Segunda. Bruce explica:
“Eu só tinha duas ou três pequenas ideias para coisas separadas, e uma delas incluía o verso: ‘Mist is in the trees, stone sweats with the dew / The morning sunrise, red before the blue’ [‘A névoa está nas árvores, a pedra transpira com o orvalho / O nascer do sol, vermelho antes do azul’]. Era basicamente uma cena: o amanhecer, algo vai acontecer. A ideia era: serão aviões de caça da Primeira Guerra Mundial decolando, e eles terão mortes horríveis. E a música é sobre isso.”
O romance francês “O Vermelho e o Negro” (1830), de Stendhal, inspirou a faixa “The Red and the Black”, cuja gravação foi um desafio para Bruce, segundo o autor da canção, Steve.
“Já escrevi algumas letras assim no passado, e Bruce surta um pouco com isso. ‘Não consigo cantar isso, p#rra!’. Não sou cantor, então não tenho noção de como é difícil cantar certas coisas. Na minha opinião, Bruce é um cantor tão bom que consegue dar conta de qualquer recado. Às vezes ele me dá uma bronca, e é justo. Eu entendo por que ele fica frustrado. Mas geralmente ele acaba fazendo o que eu quero que ele faça. Ele diz ‘sim’ a tudo.”
Embora herde o título de um sucesso de Smokey Robinson dos anos 1960, “Tears of a Clown” tem inspiração mais sombria: a depressão e o suicídio do comediante Robin Williams, em 2014. E apesar de Dickinson já ter uma música chamada “Man of Sorrows”, presente em seu álbum solo “Accident of Birth” (1997), a canção quase homônima do Maiden (“The Man of Sorrows”) é totalmente distinta, remetendo a Cristo como mencionado em Isaías 53 na Bíblia Sagrada.
Completam o repertório “The Great Unknown”, “When the River Runs Deep”, “Shadows of the Valley” e a faixa-título, cujas letras equivalem a ensaios e divagações sobre a mortalidade e a vida após a morte.
Gravações espontâneas e som ao vivo capturado no estúdio
As sessões de gravação de “The Book of Souls” aconteceram de setembro a dezembro de 2014 no estúdio Guillaume Tell, em Paris, onde a banda havia registrado “Brave New World”. Sob o comando do produtor Kevin “Caveman” Shirley, o Maiden optou por um processo praticamente ao vivo, com todos tocando juntos no estúdio. A ideia, segundo Steve Harris, era capturar a energia da banda no palco.
Sem ensaios prévios, os músicos levaram apenas ideias soltas ao estúdio, contrariando a prática dos últimos anos, como relembra Adrian Smith:
“Em álbuns anteriores, costumávamos ensaiar por duas semanas e já tínhamos quatro ou cinco músicas prontas. Depois, gravávamos o restante no estúdio. Mas desta vez, entramos com uma tela em branco e um monte de ideias.”
O também guitarrista Dave Murray acrescenta que o processo foi, ao mesmo tempo, desafiador e divertido:
“Você tem que estar muito atento. Estávamos rabiscando acordes, melodias, harmonias, mudanças… basicamente, voando sem bússola porque nunca sabíamos o que viria a seguir. Mas foi maravilhoso ver como as coisas simplesmente fluíram.”
O resultado foi um álbum espontâneo e dinâmico, no qual a experiência e o entrosamento dos músicos transparecem em cada faixa. Parte desse mérito, segundo o guitarrista Janick Gers, deve-se à habilidade do produtor Kevin Shirley:
“Ele entende o que queremos transmitir; consegue capturar o som ao vivo, com certeza. Um som real.”
Apesar de admitir alguns embates com Shirley, Smith se disse satisfeito com o resultado:
“Para ser sincero, alguns álbuns que fizemos no passado soam um pouco crus demais para o meu gosto. Gosto de potência e peso, mas também de um pouco de delay nos vocais, coisas assim. Kevin e eu tivemos nossos impasses, mas estou muito feliz com o som deste álbum. É a mistura certa de crueza na performance, mas com um toque de refinamento… provavelmente porque eu ficava enchendo o saco dele a cada cinco minutos. [Risos.]”
O câncer, o silêncio e a superação
O clima descontraído das gravações contrastava com uma preocupação silenciosa. Pouco tempo após finalizar suas partes vocais, Bruce Dickinson recebeu o diagnóstico de um tumor cancerígeno na língua — e o comparou a “bater o carro contra uma parede de tijolos”.
Quando o médico perguntou sobre seus planos. Bruce respondeu:
“Planos? A partir de agora, meu único plano é me livrar disso. Esse é meu trabalho em tempo integral. Nada mais importa.”
Ele se dedicou a entender todos os detalhes do tratamento:
“Pesquisei os medicamentos, a toxicologia, o câncer em si. Meu oncologista foi fantástico porque me explicou como todo o processo funciona. Eu perguntava coisas o tempo todo. Queria entender exatamente o que estava acontecendo com meu corpo. Não que você consiga controlá-lo, mas queria compreender.”
Steve Harris conta que ninguém da banda suspeitava de nada:
“Ele já tinha terminado todas as partes vocais, e nós continuávamos trabalhando em outras coisas. Sério, não sabíamos de nada — ele não demonstrou nenhum sinal. E quando você ouve [o disco]… Ele está cantando melhor do que nunca.”
A notícia foi mantida em sigilo até que Bruce estivesse pronto para divulgá-la. Enquanto o mundo aguardava o álbum, ele se submeteu ao tratamento, incluindo sessões de quimioterapia e radioterapia “com radiação suficiente para matar 13 pessoas”, segundo o próprio.
Perguntado pela Kerrang! se temia perder a voz, Bruce foi direto:
“Claro que pensei: ‘E se isso mudar minha voz a ponto de eu não conseguir mais cantar?’ Mas também pensei: ‘Se ‘The Book of Souls’ for a última coisa que eu fizer com essa voz, eu ficarei muito feliz’.”
Em maio de 2015, veio a boa notícia: Bruce estava livre do câncer — e, segundo Dave Murray, em “forma perfeita”:
“A banda está mais forte do que nunca, e Bruce sempre foi o cara mais em forma e forte da banda. Não teremos problema em sair em turnê.”
Mas a banda teria que esperar até 2016 para cair na estrada, como Rod Smallwood explicou:
“Embora Bruce esteja naturalmente ansioso para retomar as atividades do Maiden, levará um tempo até que ele esteja completamente recuperado. Por isso, a banda não fará turnês nem shows até o ano que vem.”
O primeiro álbum duplo e o retorno triunfal aos palcos
Lançado em 4 de setembro de 2015, com capa assinada por Mark Wilkinson — o mesmo capista da reedição do ao vivo “Live at Donington” (1998), entre outros —, “The Book of Souls” marca um feito inédito: o primeiro álbum duplo de estúdio do Iron Maiden, com mais de 90 minutos de música. Mas, se dependesse da gravadora, parte do material teria sido engavetada ou editada, como lembra Bruce:
“Nosso empresário questionou: ‘Álbum duplo? Fala sério! Por que não fazem como o Guns N’ Roses fez em ‘Use Your Illusion’?’. Dissemos: ‘Nem f#dendo! Não somos o Guns N’ Roses, p#rra!’”
“The Book of Souls” foi lançado em CD duplo, vinil triplo e formatos digitais. Apesar de alguns fãs considerarem-no extenso, conquistou boas posições nas paradas de diversos países, chegando ao primeiro lugar em mais de vinte países, incluindo o Brasil.
A crítica especializada o recebeu de forma majoritariamente positiva, elogiando a ousadia, a coesão e o equilíbrio entre o peso tradicional e elementos progressivos e atmosféricos. Para Classic Rock, Loudwire e Metal Hammer, o disco do ano. No ranking da Kerrang!, só ficou atrás de “Sol Invictus”, do Faith No More.
Com cenários grandiosos, efeitos especiais e o retorno do icônico Ed Force One — avião de turnê pilotado por Bruce Dickinson —, a The Book of Souls World Tour percorreu o mundo entre 2016 e 2017, passando pelo Brasil para shows em Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza e São Paulo.
Dado o conjunto da obra, mais do que um novo capítulo discográfico de um dos maiores nomes do heavy metal, “The Book of Souls” representa superação e celebração da vida, como Bruce Dickinson afirma:
“Fazer um álbum do Maiden não é trabalho no sentido chato. É prazer. Sempre pensei: ‘Tudo o que faço tem que ser algo de que eu gosto’.”
Para Janick Gers, trata-se, sobretudo, de um álbum ousado e vital:
“Bandas precisam crescer, explorar novos caminhos, ultrapassar limites. Dizem que o Maiden sempre soa igual, mas não soa. E este álbum prova isso.”
Iron Maiden – “The Book of Souls”

- Lançado em 4 de setembro de 2015 pela Parlophone
- Produzido por Kevin Shirley
Faixas:
- If Eternity Should Fail
- Speed of Light
- The Great Unknown
- The Red and the Black
- When the River Runs Deep
- The Book of Souls
- Death or Glory
- Shadows of the Valley
- Tears of a Clown
- The Man of Sorrows
- Empire of the Clouds
Músicos:
- Bruce Dickinson – vocais, piano em “Empire of the Clouds”
- Steve Harris – baixo, teclado, backing vocals
- Dave Murray – guitarra
- Adrian Smith – guitarra, backing vocals
- Janick Gers – guitarra
- Nicko McBrain – bateria, percussão em “Empire of the Clouds”
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