O Carioca Club estava abarrotado. Era tão difícil de se movimentar que, depois da euforia com a primeira música, “Practice What You Preach”, só se formou uma daquelas rodas enormes na pista com “Into the Pit”, no final do show. Nem por isso, a apresentação sem pausas de 1h50min do Testament em São Paulo deixou de ser uma baita aula de thrash metal da qual o público saiu extenuado e extasiado.
Foi a oitava passagem do veterano grupo da Bay Area de São Francisco por São Paulo. A apresentação que encerrou sua excursão latino-americana não tinha nenhum atrativo específico. O álbum mais recente, “Titans of Creation” (2020), sequer foi representado no repertório. Apesar da quadra de faixas de “Practice What You Preach” na abertura do show, também não era a turnê especial celebrando o disco de 1989 na íntegra, como aconteceu na América do Norte no primeiro semestre deste ano.

Ou seja: não precisou nada além do apelo da sólida carreira do próprio Testament para esgotar os ingressos do Carioca Club em uma turnê com outras cinco datas no Brasil, todas recebendo bom público. Depois de o Megadeth seguir os passos do Slayer ao anunciar seu disco final e uma turnê de despedida, os fãs talvez tenham se dado conta de que não vai ter uma lenda do thrash metal para sempre na sua cidade. A julgar pelo longo show numa noite relativamente fria de domingo em São Paulo, porém, não há motivos para se preocupar.
Genocídio abre a noite
Lenda por lenda, o Genocídio é um dos nomes mais clássicos da música extrema brasileira. Em sua quinta década de carreira, o grupo paulistano tem tanto material a mostrar que subiu ao palco do Carioca Club cinco minutos antes do horário previsto.
A pista já estava bem cheia e observou com respeito a banda executar durante quase quarenta minutos um repertório compreensivo de sua longa discografia. Apesar de faixas como “Kill Brazil”, do álbum “In Love with Hatred” (2013), e o clássico de “Hoctaedrom” (1993), “Uproar”, serem feitas para abrir rodas em qualquer lugar do mundo, não rolou nada em São Paulo além de palmas e alguns gritos do nome da banda.

Não é como se a postura sóbria do vocalista e guitarrista Murillo Leite também instigasse maiores reações no público. Com o baterista Herbert Loureiro adicionado no ano passado à formação completada pelo lendário baixista Wanderley Perna e Wellington Simões, responsável pela maioria dos solos de guitarra, o Genocídio se concentrou em oferecer, com sucesso, uma sólida e pesada apresentação.
Três composições próprias do álbum mais recente, “Fort Conviction” (2024), foram executadas. A faixa-título e “Aside” abriram com força o show, enquanto a soturna “The Sole Kingdom of My Own” foi o primeiro respiro da noite.

O outro veio em uma densa versão para “Never Tear Us Apart”, do INXS. O inusitado cover, também presente no disco novo, gerou alguns comentários de gente na pista que ainda não aceita bem esse tipo de “ousadia” e preferia apenas pancadarias como “The Clan”. A faixa-título do disco de 2010 foi a última executada pelos paulistanos, já com a pista do Carioca Club abarrotada.
Repertório — Genocídio:
- Fort Conviction
- Aside
- Synthetic Screams
- Pilgrim
- The Sole Kingdom Of My Own
- Kill Brazil
- Rebellion
- Never Tear Us Apart (cover de INXS)
- Uproar
- The Clan
Roadie e Chuck Billy instigam público com rivalidade Rio-SP
Alguns minutos antes das oito da noite, quando o Testament estava previsto para subir ao palco, um dos três brasileiros da equipe técnica da banda tomou para si a palavra. Vestindo uma camiseta com o símbolo estilizado do Corinthians, revelou-se paulista e falou que o público do show no Rio de Janeiro na véspera tinha sido o melhor daquela turnê. E apelou à batida rivalidade regional para instigar as pessoas que já se esmagavam na pista do — vejam só — Carioca Club, inclusive com a promessa de uma música exclusiva para a apresentação em São Paulo. Vídeo abaixo:
Chuck Billy, lendário frontman do Testament, também não se furtou de apelar à comparação com o público da noite anterior para despertar reações mais entusiasmadas na casa paulistana. Nem precisava. A gritaria já havia começado antes mesmo do grupo californiano subir ao palco, no refrão de “(You Gotta) Fight for Your Right (To Party!)”, dos Beastie Boys, executada com volume total no sistema de som.
Com meros cinco minutos de atraso, “Practice What You Preach” deu o pontapé inicial da apresentação e a frenesi se manteve nas seguintes três faixas do mesmo terceiro disco da banda, lançado em 1989, incluindo a “enganadora” “The Ballad”, adicionada ao repertório da turnê brasileira na noite anterior. O som de todos os instrumentos já era nítido no Carioca Club desde o começo do show e, ainda assim, aos poucos a equalização foi ficando melhor.

A parceria icônica entre Eric Peterson e Alex Skolnick
Apesar de ser liderado por um cantor carismático do porte de Billy, ainda com pleno controle do uso melódico de sua voz em quase duas horas de show, o Testament deu espaço para cada músico ter seu momento de contato direto com o público. Antes do clássico “The Haunting”, primeira das três faixas na noite extraídas do lendário disco de estreia, “The Legacy” (1987), o guitarrista Eric Peterson assumiu o microfone. O principal compositor da banda se lembrou de seus tempos de colegial, quando escreveu a música ao lado do parceiro nas seis cordas, Alex Skolnick.
A forma como a agressividade de Peterson se complementa ao virtuosismo melódico de Skolnick foi o principal ingrediente da receita que colocou o Testament nos anos 80 como uma possível competidora por aquela vaga no “Big 4” do thrash metal. Mesmo quando a parceria esteve desfeita nos anos 90 e o grupo optou por sobrecarregar no peso, resquícios desse tipo de abordagem ainda eram sentidos, como ficou claro na reação do público cantando junto os petardos “Low”, faixa-título do álbum de 1995, e “D.N.R.”, de “The Gathering” (1999).

Nenhuma música dessa segunda metade dos anos 90, porém, é mais simbólica do que “Trail of Tears”, que deu início a uma espécie de mais sereno da noite. A balada de “Low” foi dedicada a Brent Hinds, ex-guitarrista e fundador do Mastodon falecido em um trágico acidente de moto dias antes, e soou ao vivo como se sempre tivesse sido composta ainda com Skolnick na banda — o lendário James Murphy foi o responsável por registrá-la em estúdio.
Skolnick então usou seu momento de frontman para saudar outras bandas brasileiras. Anunciou que a próxima turnê do Testament será ao lado da Nervosa para se lembrar da primeira visita ao país, em 1989, quando tocaram ao lado do Sepultura.
Além de soltar uns “Obrigados” com um sotaque carregado no italiano, o guitarrista ainda mencionou a presença de Fernanda Lira, da Crypta, na plateia, antes de começar a animada “Electric Crown”. A faixa do renegado “The Ritual” despertou alguns dos coros mais altos da noite, como se reação adversa ao disco lá em 1992 — último antes da interrupção da parceria entre os guitarristas naquela década — tenha virado apenas um distante momento do passado. Na baladaça “Return to Serenity”, do mesmo trabalho, Skolnick brilhou ao reproduzir um de seus mais belos e icônicos solos enquanto o público cantava em uníssono o refrão.

Antes dela, o lendário Steve Di Giorgio usou o microfone para soltar uns palavrões em português, mas logo pegou seu baixo para tocar uma breve menção ao riff inicial de “Symbolic”, do Death. O músico — responsável por seguir com o lendário de Chuck Schuldiner junto ao projeto Death to All — emendou em seguida a clássica introdução composta pelo ex-baixista Greg Christian em “Souls of Black”, cadenciada faixa-título do álbum de 1990.
A boa reação do público à fase recente
Nem só de nostalgia, porém, viveu o Testament em São Paulo. A parceria restabelecida entre Alex Skolnick e Eric Peterson neste século também é responsável pela boa fase atual do grupo, com quatro discos bem recebidos pelo público desde 2008 — e um quinto, “Para Bellum”, a caminho ainda em 2025.
Em um repertório bem compreensivo de toda a sua discografia, além do já citado álbum mais recente do grupo, “Titans of Creation”, apenas o extremo “Demonic” (1997), não teve músicas executadas no Carioca Club.

As duas faixas de “Dark Roots of the Earth” (2012) despertaram coros do público bem maiores do que “The Pale King”. A “caçula” da noite, tirada de “Brotherhood of the Snake” (2016), passou sem muito alarde, também com as do disco anterior, na primeira metade do set.
Já no final da noite, “More than Meets the Eyes”, música de “Formation of Damnation”, o disco de 2008 que marcou o início dessa retomada da carreira, teve na reação entusiasmada do público ao seu coro fácil a marca de um clássico recente do Testament.

Show longo e sem pausas ainda dispensou clássicos
Noite que, apesar do respiro mais cadenciado e duas baladas, não teve pausas durante os mais de cem minutos de apresentação do set do Testament. Apenas em um momento, quase todos os músicos saíram do palco: quando o correto e discreto Chris Dovas, também o único a não pegar o microfone, teve seu contato direto com o público em um breve e naturalmente esquecível solo de bateria.
A pancadaria de “First Strike is Deadly” encaminhou o show para a reta final e teve seu solo cantado em coro, assim como “Over the Wall”, as outras duas do disco de estreia da noite. A apresentação acabou com “Into the Pit”, única representante do clássico “The New Order” (1988), finalmente abrindo uma daquelas rodas que tomam conta da pista quase inteira enquanto a mencionada Fernanda Lira, no palco, ajudava no refrão de forma ligeiramente imperceptível.

A prometida música exclusiva para São Paulo foi executada nessa reta final. “Dog Faced Gods”, outro petardo ultra pesado de “Low”, não despertou reações muito fortes do público, talvez já economizando energias na espera por clássicos. Não deixa de ser simbólico que, em um repertório longo e compreensivo, ninguém em sã consciência possa dizer que fizeram falta músicas como “Burnt Offerings” e “Alone in the Dark”, do primeiro álbum, ou “Disciples of the Watch” e a respectiva faixa-título de “The New Order”.
Se duas das bandas do Big 4 já encaminharam suas carreiras para um final dinossáurico, o Testament provou no palco que ainda tem uns bons e intensos anos pela frente. Com um novo disco prestes a ser lançado, talvez já seja caso de se pensar numa casa maior para receber o retorno do grupo em São Paulo, Afinal, nas palavras de Chuck Billy, o público da cidade varreu o da noite anterior no Rio de Janeiro. Obviamente, depois disso, os músicos saíram ovacionados do Carioca Club — a ironia, a ironia…

Testament — ao vivo em São Paulo
- Local: Carioca Club
- Data: 24 de agosto de 2025
- Turnê: Latin American Tour 2025
- Produção: Liberation MC
Repertório:
- Practice What You Preach
- Sins of Omission
- Perilous Nation
- The Ballad
- The Pale King
- The Haunting
- Rise Up
- D.N.R. (Do Not Resuscitate)
- Low
- Native Blood
- Trail of Tears
- Electric Crown
- Souls of Black
- Return to Serenity
- Solo de bateria de Chris Dovas
- First Strike Is Deadly
- Dog Faced Gods
- Over the Wall
- More Than Meets the Eye
- Into the Pit
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