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System of a Down entrega show catártico no Rio em meio a tensões internas e silêncio criativo

Terceira passagem do grupo pela capital fluminense une “todas as tribos”; brasileiro Ego Kill Talent encara plateia resistente na abertura

Em 2005, o System of a Down lançou dois álbuns que chegaram ao topo das paradas norte-americanas — “Mezmerize” e “Hypnotize” —, mas decidiu encerrar as atividades no ano seguinte. Serj Tankian (vocais), Daron Malakian (guitarra), Shavo Odadjian (baixo) e John Dolmayan (bateria) viram-se incapazes de chegar a um consenso sobre os rumos criativos da banda.

Eles voltaram aos palcos em 2011, no primeiro dos dois anos da chamada Reunion Tour, que passou por 17 países, incluindo o Brasil. Na ocasião, o grupo se apresentou na Chácara do Jockey, em São Paulo, e no Palco Mundo do Rock in Rio, no Rio de Janeiro, dividindo a noite com Guns N’ Roses, Evanescence, Pitty e Detonautas. “O que se viu foi uma apresentação memorável, que atendeu à grande expectativa da plateia”, registrou Marco Aurélio Canônico na Folha de S.Paulo. Para ele, o System merecia ter encerrado o festival.

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Quatro anos depois, o quarteto armênio-americano retornaria ao país para mais duas apresentações: uma nova passagem pelo Rock in Rio — desta vez celebrando os 30 anos do festival — e um show na Arena Anhembi, em São Paulo, com abertura do Deftones.

Entre essa última vinda e a atual turnê sul-americana “Wake Up!”, que conta com nove datas, cinco delas no Brasil, o System operou majoritariamente em modo de espera. Os shows foram esporádicos, e o convívio entre os integrantes, mínimo — quando existente. Cada um seguiu seus próprios caminhos, nem sempre musicais: Tankian, por exemplo, publicou no ano passado sua autobiografia “Down with the System”, em que detalha não apenas sua trajetória artística, mas também suas convicções políticas e os bastidores turbulentos da banda.

Foto: @pridiabr

Grande parte das tensões internas gira em torno do controle criativo. As composições não são creditadas igualmente entre os membros, o que fez de Malakian, principal compositor, o integrante mais bem remunerado, gerando ressentimentos. Há também dissensos ideológicos: embora os quatro músicos sejam de ascendência armênia e tenham familiares impactados pelo genocídio armênio — que começou em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, com a deportação e o assassinato de cerca de 1,5 milhão de armênios pelo Império Otomano —, Dolmayan tem se manifestado como um conservador de direita nos últimos anos, chegando a criticar publicamente Tankian, também seu cunhado, por suas posições políticas progressistas e seu ativismo. O baterista defende que a banda não deve se restringir a uma única agenda temática.

É fato que o System of a Down possui, sim, um repertório marcadamente político — um de seus maiores sucessos, “B.Y.O.B.”, é uma crítica contundente à Guerra do Iraque e à forma como líderes políticos enviam os pobres para combater, enquanto se mantêm distantes do front. No entanto, as letras da banda vão muito além: exploram temas como religião (“Suite-Pee”) e crises existenciais (“Lonely Day”). A oposição intransigente a qualquer forma de opressão, injustiça ou violência é o fio condutor da obra do grupo.

Mas talvez o que torne o System tão singular seja sua capacidade de fundir estilos considerados pelos mais fundamentalistas incompatíveis com o metal. Rap, ska, punk, reggae, música folclórica armênia e até levadas quase dançantes são integrados de maneira orgânica à sonoridade do grupo, sempre com uma estética teatral e intensa — marca registrada da banda desde seus primeiros lançamentos.

Foto: @pridiabr

Tretado, mas ainda relevante

Apesar da notável distância entre os integrantes no palco — visível nos poucos olhares trocados e na ausência de interações diretas —, o que o público carioca presenciou na noite de quinta-feira (8), no quase lotado Estádio Nilton Santos, o Engenhão, foi uma explosão crua e generosa de energia. Foram 32 músicas executadas em pouco menos de duas horas, sem pausas longas nem discursos. Um setlist que percorreu todos os discos da banda e reafirmou que, mesmo em silêncio discográfico há quase duas décadas — com exceção dos singles “Protect the Land” e “Genocidal Humanoidz”, lançados em 6 de novembro de 2020 em apoio ao povo armênio durante o conflito em Nagorno-Karabakh —, o System of a Down segue relevante. E, mais do que nunca, necessário.

Basta uma varredura rápida no público para entender que o System of a Down talvez não seja o “Norvana”, mas também “une todas as tribos”. Havia ali Pikachu, Jesus Cristo, pessoas fantasiadas de banana, pais, filhos e até netos. Tatuagens sugestivas, cortes de cabelo questionáveis e uma mistura geracional rara num show de rock. O atraso de trinta minutos não diminuiu o entusiasmo da plateia que, ao apagar das luzes, iluminou o estádio com as lanternas dos celulares tingidas com as cores da bandeira da Armênia, como combinado previamente pela internet, a fim de apoiar a banda na luta pelo reconhecimento do genocídio armeno.

O telão exibe o sorriso sereno de Serj, e o System abre os trabalhos com “X”, faixa explosiva de “Toxicity” (2001), álbum seminal que rendeu nada menos que 11 das 32 músicas do repertório da noite. O setlist, aliás, teve diferenças em relação ao apresentado em Curitiba dois dias antes, refletindo a abordagem espontânea que a banda costuma adotar em suas turnês.

A proibição do uso de sinalizadores revelou-se inócua. Eles surgiram aos montes, tanto na pista comum quanto na premium, acompanhados por um outro aroma onipresente: o dos baseados. Nada disso, no entanto, pareceu gerar tensão. A festa era coletiva e autêntica — embora um sinalizador em mãos erradas ainda represente um perigo real.

“Prison Song”, também de “Toxicity”, foi um dos primeiros grandes momentos da noite, com o público assumindo os vocais de resposta de Daron, especialmente nos versos ácidos “I buy my crack, my smack, my bitch right here in Hollywood” (“Eu compro meu crack, minha heroína, minha v#dia bem aqui em Hollywood”), que ecoaram pelas vigas do Engenhão como um grito de desespero contra o encarceramento em massa nos Estados Unidos. Em “Aerials”, balada melancólica que questiona a perda de individualidade diante das normas sociais, o telão foi acionado pela primeira vez com imagens etéreas que ampliavam a sensação de transcendência da canção.

Simples, mas ainda eficiente

Ao contrário de bandas que investem em cenografias mirabolantes, a ambientação do System se apoia sobretudo em jogos de luz — e com grande eficácia. Em “Deer Dance”, as imagens de protestos pacifistas reforçavam a crítica à brutalidade policial. Já “Radio/Video” trouxe uma animação de estética retrô, com comerciais de revistas dos anos 1950 e 60, evocando o contraste entre o conservadorismo de outrora e a rebeldia contemporânea. Em “Needles”, os refletores assumiram padrões enviesados, acompanhando a quebra rítmica da música, enquanto a plateia batia palmas no trecho em que Daron canta: “Sitting in my room with a needle in my hand…” (“Estou sentado no meu quarto com uma agulha na mão”).

“Hypnotize”, faixa-título do último álbum de estúdio da banda, trouxe Tankian para perto da bateria, cantando em uníssono com Malakian sob um leque de luzes que pulsava com intensidade. Em “ATWA”, uma das canções mais soturnas da noite, o palco mergulhou na escuridão total, em consonância com a densidade emocional da letra, inspirada por temas ambientais e pela controversa figura de Charles Manson.

As cores da bandeira armênia voltaram a dominar a plateia em “Soldier Side”. Mas a introspecção foi rapidamente substituída por catarse: bastaram os primeiros acordes de “B.Y.O.B.” para o estádio inteiro despertar em fúria — um chamado direto à indignação contra a lógica militarista e a hipocrisia dos governos. Mosh pits se abriram em ambas as pistas, e na pista comum, um espectador improvisou um show à parte: cuspiu fogo no meio da roda.

Foto: @pridiabr

Reta final

“Psycho” levou Serj ao teclado, cujos acordes se impuseram sobre os demais instrumentos. O solo de Daron, um dos melhores da noite, finalmente sobressaiu num som que por vezes deixava a desejar: os vocais de ambos frequentemente desapareciam na mixagem, prejudicada por um grave excessivo. Demonstrando sensibilidade ao que funciona visualmente, a dupla incentivou a plateia a bater palmas em “Chop Suey!”, criando um momento de comunhão digno de final de campeonato. A canção, com sua estrutura não convencional e letra enigmática, é o verdadeiro hino da banda — e foi recebida como tal.

Na sequência, “Lost in Hollywood” — um olhar nostálgico para os tempos difíceis em Glendale, nos arredores de Los Angeles, onde a banda foi formada — acompanhada de perto por “Lonely Day” e “Spiders”, ambas marcadas por um lirismo melancólico e introspectivo, arrefeceram os motores, religados com o máximo de potência em “Forest”, durante a qual Malakian perdeu a cartola enquanto batia cabeça.

A reta final ainda teve espaço para “Cigaro”, cuja letra sarcástica brinca com masculinidade tóxica e foi dedicada ao fotógrafo da banda, Greg Watermann. “Toxicity” arrebatou os últimos fôlegos do público antes do encerramento do tipo “quebra tudo” com “Sugar”, numa espécie de exorcismo coletivo.

Pouco antes do fim, Shavo desfilou pelo palco com uma bandeira do Brasil sobre os ombros. Serj lhe deu um tapinha nas costas e, após o último acorde, os quatro músicos — que pouco interagiram entre si ao longo do show — se reuniram num abraço tímido, mas carregado de simbolismo.

A ausência de novos álbuns talvez seja reflexo de desacordos que o tempo não curou, mas o palco segue sendo o território onde o System of a Down ainda se entende. E quando isso acontece, o estrondo é alto o suficiente para acordar qualquer um.

Foto: @pridiabr

Por fim, a abertura

Na abertura da noite, o brasileiro Ego Kill Talent fez o possível para vencer a resistência de um público que já demonstra cansaço em vê-los como a escolha recorrente para os grandes shows internacionais no país. A vocalista Emmily Barreto ocupa o centro do palco com energia e presença cênica, mas em alguns momentos exagera na intensidade, tornando os vocais mais gritados do que cantados. Em nome da banda, ela agradeceu a oportunidade e reconheceu a importância de dividir o palco com o System of a Down em um estádio lotado — um passo relevante na trajetória do grupo.

Méritos próprios e bons contatos à parte, o quinteto apresentou um show correto, ainda que pouco envolvente. As composições em inglês, com sonoridade voltada ao rock alternativo e pós-grunge, não chegaram a estabelecer uma conexão com a plateia — prejudicadas também por um som embolado que deixou vocais e instrumentos indistintos.

A dispersão foi notória. Os aplausos vinham mais por cortesia do que por empolgação genuína. Contavam-se nos dedos os que realmente conheciam as músicas apresentadas.

Talvez seja o momento de abrir espaço para novas bandas dividirem essa vitrine — não por descartar o Ego Kill Talent, mas para oxigenar o cenário e garantir que o aquecimento para o show principal venha com a mesma intensidade que a noite promete entregar. Afinal, todo grande espetáculo merece uma abertura à altura.

System of a Down — ao vivo no Rio de Janeiro

  • Data: 8 de maio de 2025
  • Local: Estádio Olímpico Nilton Santos (Engenhão)
  • Turnê: Wake Up!
  • Produção: 30e

Repertório:

  1. X
  2. Suite-Pee
  3. Prison Song
  4. Aerials
  5. I-E-A-I-A-I-O
  6. 36
  7. Pictures
  8. Highway Song
  9. Needles
  10. Deer Dance
  11. Soldier Side (Intro)
  12. Soldier Side
  13. B.Y.O.B.
  14. Radio-Video
  15. Dreaming (trecho)
  16. Hypnotize
  17. Peephole
  18. Atwa
  19. Bounce
  20. Suggestions
  21. Psycho
  22. Chop Suey!
  23. Kill Rock ‘N’ Roll
  24. Lost in Hollywood
  25. Lonely Day
  26. Mind
  27. Spiders
  28. Forest
  29. Cigaro
  30. Roulette
  31. Toxicity
  32. Sugar

Repertório — Ego Kill Talent:

  1. We Move as One
  2. Lifeporn
  3. Call Us by Her Name
  4. Need No One to Dance
  5. Never Fading Light
  6. Reflecting Love
  7. When it Comes
  8. Finding Freedom
  9. Just For the Likes
  10. Last Ride

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Marcelo Vieira
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Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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