Num mês em que o calendário no Brasil se parece ao dos grandes centros do mundo em quantidade de shows, coube ao Balaclava Fest ocupar o espaço como o principal evento da música alternativa paulistana, com o cancelamento do Primavera Sound 2024 e o Popload se dividindo entre inúmeras apresentações individuais ao longo de novembro.
O festival, porém, já se tornou um marco no calendário da cena musical alternativa em São Paulo. Organizado pelo selo do mesmo nome — referência do cenário independente brasileiro há mais de uma década —, o evento se tornou em 2024 praticamente uma longa abertura para o show do Dinosaur Jr., em sua terceira visita ao Brasil, dez anos após seu último show na mesma cidade.
Não que o evento organizado pela terceira vez seguida no Tokio Marine Hall, tradicional casa de shows na zona sul da cidade de São Paulo, não tenha trazido atrações de interesse. Porém, a maior parte do público que no último domingo (10) encheu a casa, próxima de sua lotação, vestia camisetas do grupo de Amherst, no estado americano do Massachusetts, e demonstrou um respeito curioso pelos demais artistas ao longo do dia.
Para o evento que começou na tarde do domingo e terminou em tempo justíssimo para o público pegar os últimos trens da noite na estação mais próxima, a casa transformou uma tradicional antessala de espera dos shows na pista principal. As pessoas se amontoaram em bares e pequenas mesas, no espaço com um palco minúsculo e de baixa estatura, chamado de “Hall”.
Numa outra parte da casa, um pouco afastada do local onde ocorrem os shows, foi montada uma área com sofás e mesas ao ar livre, na qual também ficava o estande de merchandising e outras opções de comida. Serviu para o descanso de quem não quis acompanhar todas as apresentações, que acabaram acontecendo praticamente coladas uma na outra.
Artistas brasileiros aquecem público
Enquanto a área tradicional de shows do Tokio Marine Hall não estava disponível, as duas primeiras atrações brasileiras Paira e Raça começaram os trabalhos no palco Hall.
A dupla mineira Paira, formada por André Pádua e Clara Borges, apresentou-se como um quarteto no Balaclava Fest e deu o pontapé inicial ao evento sem uma sonoridade que surpreendesse qualquer desavisado já perdido pelo Tokio Marine Hall por volta das 16h. Além da alternância de momentos calmos com outros de maior peso, os dois membros principais trocavam vozes ou cantavam em duetos.
O uso nada econômico de batidas pré-gravadas, apesar de contarem com um baterista no palquinho, adicionou um ar eletrônico aos temas introspectivos do grupo. Entreteve um bom público no espaço apertado onde tocaram.
O quinteto paulistano Raça já chegou com um pouco mais de energia, comandado aos pulos pelo vocalista e guitarrista Popoto Martins, com seus três companheiros da linha de frente do palco, Novato Calmon (baixo), João Viegas (sintetizador) e Santiago Obejero Paz (guitarra) se aventurando pelos vocais também — só o baterista Thiago Barros não cantava. Boa parte do público presente já se mostrava conhecedora da mistura de indie, emo e hardcore do grupo, que encheu ainda mais o pequeno palco com participações especiais, como o saxofonista argentino Gal Go.
Enquanto o Raça ainda terminava seu show no palco Hall, os músicos de apoio de Ana Frango Elétrico já executavam a parte instrumental de “Let’s Go to Before Again” até a cantora entrar ovacionada no palco principal do Balaclava Fest. Abusando de efeitos eletrônicos e sonoros em sua versão modernizada de MPB, sua apresentação alternou momentos mais introspectivos, como “Camelo Azul” e “Insista em Mim”, com outros mais dançantes, no caso de suas versões para “Debaixo do Pano” e “Dr. Sabe Tudo”. Ao final, com “Electric Fish”, a artista pediu para o público cantar junto e foi moderadamente bem-sucedida.
Nabibah Iqbal rouba a cena entre gringos
Mal dava tempo para respirar. Ao sair da área do palco principal, as propagandas de uísque e cerveja patrocinadoras do festival já eram executadas no pequeno telão atrás do palco Hall, indicando que a artista inglesa Nabibah Iqbal estava para começar sua apresentação.
Acompanhada apenas da baixista Shoko Yoshida, Iqbal ganhou o público tentando se comunicar em português — sofreu para conseguir falar “Sesc Carmo”, anunciando seu show no dia seguinte — e se mostrou feliz pela oportunidade de tocar no país. Seu repertório de quase uma hora esteve mais focado em seu álbum mais recente, “Dreamer”, cuja faixa-título ela alegou ter sido a única música feliz que já escreveu na vida.
Não que tenha sido depressivo o resto do show da artista, ora empunhando guitarra, ora apenas cantando em cima dos sons de teclado e bateria pré-gravados (apesar do volume surpreendentemente baixo). As batidas dançantes combinavam com suas belas melodias etéreas, em algum momento mais soturnas. Caiu bem, assim, uma versão para “A Forest”, do The Cure, antes de Iqbal deixar o palco, mas após aprender a dizer “te amo” para o público.
BADBADNOTGOOD e Water from Your Eyes
No palco principal, na sequência, os canadenses do BADBADNOTGOOD começavam sua apresentação na escuridão quase total, quando seu projetor de 16mm reproduzia no pano de fundo do palco apenas uma lua. Posteriormente, filmes específicos para cada canção do repertório de pouco mais de uma hora foram projetados sobre os seis músicos no palco, sem aquele usual jogo de luzes no teto do palco iluminando os artistas.
Ainda assim, contrariando as expectativas para um show instrumental — por mais animado que seja o jazz meio psicodélico do grupo —, o falante baterista Alexander Sowinski (ou simplesmente Al, como se apresentava) a todo momento fazia intervenções. Por vezes, anunciava os músicos responsáveis pelas partes principais executadas — principalmente o baixista Chester Hansen —, mas também pedia maior participação do público. Até chegou a ir à frente do palco puxar palmas.
As melhores reações vinham das músicas mais dançantes, como “Sétima Regra” ou na versão para “Cascavel”, do compositor brasileiro Antonio Adolfo. Nos momentos em que Sowinski se concentrava mais em tocar seu instrumento e deixava o espaço para Leland Whitty trocar a guitarra pelo saxofone para temas mais introspectivos, o público dispersava, como em “Confessions” ou “Unfolding”.
Ao final, após executar o tema instrumental de “The Chocolate Conquistadors” em homenagem ao falecido rapper inglês MF DOOM, o público satisfeito lotou os banheiros e abarrotou o espaço do palco Hall, onde se apresentava a dupla norte-americana do Water from Your Eyes, também no formato de quarteto assim como os mineiros que iniciaram o dia.
“Let’s indie rock”, convocou a cantora Rachel Brown para começar seu repertório com “Buy My Product”, do álbum mais recente “Everyone’s Crushed” (2023), fonte da maior parte das músicas executadas. Na sequência, “Adeleine”, do disco “Somebody Else’s Song” (2019), manteve o pessoal animado.
Aos poucos, porém, a pista do palco Hall começou a se esvaziar ao fundo enquanto o Water from Your Eyes alternava canções com alguma pegada ruidosa, como “Barley” e “My Love’s”, a outras de levada bem eletrônica, como “Cold Stare” e “True Life”. Quem se espremia perto dos músicos parecia se divertir bastante, mas a maior parte das pessoas começou a procurar seu espaço na área principal para ver a atração principal na sequência.
Cansado e ruidoso, Dinosaur Jr. toca para público alucinado
O simpático baixista Lou Barlow, herói do indie rock também por seu projeto lo-fi Sebadoh, já anunciou logo de cara que o Dinosaur Jr. estava com os braços doendo — foram três shows em quatro dias, entre Buenos Aires, Santiago na véspera e o voo no mesmo dia para se apresentar em São Paulo. O auge da estafa veio em “Out There”, ali no meio da apresentação de quase 100 minutos com que o grupo encerrou o Balaclava Fest de 2024.
O quietão guitarrista e vocalista J Mascis pediu desculpas, o grupo retomou a música por um dos seus solos para completá-la. Poderia ser o indicador de um show morno, ainda mais pelo início com a equalização de som ainda sofrendo um pouco para se encontrar.
Não foi o caso. O público estava animado e foi ajudado pela escolha do repertório, que privilegiou o clássico “You’re Living All Over Me”, com seis músicas executadas do disco lançado pela lendária gravadora SST em 1987, a começar pelas duas primeiras.
Apesar da inconstância inicial dos vocais de Mascis afundados sob o volume intenso da sua parede de amplificadores, o início com a cadenciada “The Lung” foi perfeita para o pessoal pular junto. Logo foi seguida por “In a Jar”, aumentando as cantorias.
No palco, era Barlow quem mais se animava a conversar com o público. Mascis, líder e principal compositor, cantava com seu jeitão meio melancólico, com certo ar de desinteresse, dando foco mesmo nos seus complexos riffs e inúmeros solos de guitarra. No pequeno kit de bateria, o carequinha Murph era o coração do grupo.
O entrosamento entre o trio, reunido desde 2007, se mantém quase telepático. Após cada intervalo entre as músicas marcado por apenas certos barulhos enquanto Mascis afina seu instrumento, a próxima canção muitas vezes vem quase do nada.
Lou Barlow teve seu primeiro momento nos vocais com a bonita balada “Garden”, a única faixa do mais recente álbum “Sweep It Into Space” (2021). O set ganhou mais peso com “Been There All the Time”, primeira das duas músicas executadas do disco “Beyond” (2007), que marcou o retorno à ativa do Dinosaur Jr. na formação de power trio de sua clássica fase inicial. A outra, “Crumble”, veio mais ao meio do repertório, ao lado de “Pieces”, do álbum “Farm” (2009).
O restante do show ficou mesmo com a fase anterior ao primeiro hiato, com destaque à ótima reação obtida pelas duas faixas de “Where You Been” (1993), já sem Barlow no baixo e último com Murph na bateria antes da reunião de 2007. “Out There”, interrompida após a banda se perder no meio dela, recebeu cantoria desenfreada, mas a frenesi causada por “Start Choppin’” foi das maiores da noite.
“Feel the Pain”, música de “Without a Sound” (1994) e que ganhou notoriedade nos jogos emuladores de instrumentos nos anos 2000, foi outra a despertar enorme reação do público, alternando-se entre o início cantado em coro e a loucura tomando conta da pista na parte rápida.
A reta final do show voltou a se focar nos trabalhos lançados na segunda metade dos anos 80, quando o Dinosaur Jr. era uma das “bandas que poderia ser sua vida” e crescia o bolo do rock independente norte-americano prestes a explodir em 1991. A rápida e pesada “Mountain Man”, do álbum de estreia “Dinosaur” (1985), trouxe novamente Lou Barlow nos vocais (originalmente cantados por Murph), antes da melancólica “Tarpit”, do álbum de 1987, reduzir um pouco a velocidade.
O respiro foi crucial para depois o Tokio Marine Hall vir abaixo com a rápida e empolgante “Freak Scene”, única do álbum “Bug” (1989) — o último que o trio lançou junto antes da reunião em 2007. Os ânimos se exaltaram ainda mais com o pesado, ruidoso e já clássico cover para “Just Like Heaven”, do Cure.
“Gargoyle” encerrou a primeira parte do set com seus solos de guitarra estendidos por quase dez minutos — algumas pessoas mais apressadas já foram embora enquanto Mascis não se importava com a hora. O intervalo para o bis foi de poucos minutos. Barlow até tentou negociar quantas músicas seriam tocadas no bis, mas o set acabou mesmo com apenas mais uma, a clássica “The Wagon”, de “Green Mind” (1991). Final digno do show de uma lenda do rock alternativo num evento que celebrou o estilo.
Repertório — Dinosaur Jr.:
- The Lung
- In a Jar
- Garden
- Been There All the Time
- Kracked
- Sludgefeast
- Little Fury Things
- Out There
- Feel The Pain
- Crumble
- Pieces
- Start Choppin
- Mountain Man
- Tarpit
- Freak Scene
- Just Like Heaven (cover de The Cure)
- Gargoyle
Bis: - The Wagon
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