Por uma hora e vinte minutos, nenhum dos membros do Russian Circles trocou qualquer palavra com o público. Nem houve um segundo sequer de silêncio. No melhor estilo “entra mudo e sai calado”, o trio instrumental americano tocou uma música atrás da outra, sempre emendadas por algum som ambiente ou ruídos.
Sob uma iluminação bastante esfumaçada e soturna, o Cine Joia não lotou, mas teve sua pista bem preenchida por um público empolgado, ainda que parte dele impaciente e disperso.
Retorno triunfal
A abertura da noite, promovida pela Powerline Music & Books com apoio da Heart Merch, ficou a cargo dos brasileiros do E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante. Após ter surgido no início da década passada, o quarteto instrumental paulista lançou seu álbum de estreia “Fundação” em 2018 e teve boa recepção na cena indie brasileira, chegando inclusive a se apresentar no Lollapalooza em 2019. Sua trajetória ascendente foi interrompida, porém, com a pandemia em 2020.
Como disse o empolgado guitarrista Lucas Theodoro no início da apresentação, a banda teve a impressão de que jamais subiria ao palco de novo. Ainda mais ao se considerar que o baixista Luccas Villela se mudou do país durante essa pausa forçada. Para a maior parte do show, iniciada pontualmente às 20h, Gabriel Arbex (do trio Dozaj) assumiu o instrumento, ocasionalmente trocado com Theodoro, que também controlou os barulhinhos sintetizados.
O quarteto reapareceu no ano passado com “Linguagem”, EP lançado em novembro e tocado na íntegra durante a hora completa que esteve em cima do palco. Seu som instrumental alterna sentimentos e velocidades, normal para uma banda post-rock — apesar dos riffs mais calcados em melodias indies, como no final de “Infamiliar”, do lançamento mais recente, deixando as partes pesadas concentradas apenas em certas passagens de cada música.
Como disse o guitarrista Luden Viana próximo ao encerramento do show da banda, o mês anterior à apresentação foi o mais ativo para o grupo desde a pandemia. Com a catártica “PMR”, do EP homônimo de 2013, os músicos se despediram, empolgados pela boa resposta do público neste retorno, e estendeu sua melodia com toda a barulheira e bagunça no palco a que tinha direito.
Repertório — E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante:
- Ausente
- Bruce Willis
- Pequenas Expectativas, Menores Decepções
- Já não ligo se der tudo errado
- Medo de Tentar
- Medo de Morrer
- Ticotuco
- Oblívio
- Infamiliar
- PMR
Sem frescura, sem palavras
A parada em São Paulo foi o primeiro show da turnê de estreia do Russian Circles pela América do Sul, que se encerrará atravessando a parte central do continente com um retorno do conjunto ao México. São vinte anos de carreira desde o lançamento do seu primeiro EP homônimo.
Cerca de quinze minutos antes do horário programado para começar sua apresentação, já estavam no palco — fazendo os últimos ajustes de som — o guitarrista Mike Sullivan, o baterista Dave Turncrantz e o “novato” baixista Brian Cook, também membro do Botch e Sumac, que ingressou em 2007 no lugar de Colin DeKuiper na única alteração de músicos em sua trajetória.
Minutos antes, a banda deixou o palco e, no horário marcado, a escuridão e a fumaça de gelo seco tomaram conta do Cine Joia enquanto “Ghost on High”, faixa do álbum “Bloody Year” (2019), era tocada no sistema de som como introdução. Foi das raras vezes que um som não era executado pelo trio de músicos, voltando ao palco sob aplausos para mal saírem de suas posições. Na mesa de som, o engenheiro Patrick Dunn (membro da banda Rezn, também de Chicago) fazia milagres para ajudar o trio na construção das camadas sonoras — e terminou a apresentação quase tão cansado quanto os músicos.
Diferentemente da atração de abertura, o Russian Circles não disse uma palavra sequer durante os oitenta minutos em que se apresentou no palco do Cine Joia. Quando as músicas se encerravam, também não havia silêncio. As luzes se apagavam e ficava um som de ambiência, por vezes ruidoso. Então, alguma cor se intensificava no palco e construía a atmosfera para o início da próxima música, normalmente chamada por contagem nas baquetadas de Turncrantz.
É de metal que o povo gosta
O show começou com Sullivan introduzindo o riff de “Station”, faixa-título do álbum de 2007 responsável por marcar a estreia de Cook, que marcava o tempo com sua linha de baixo ao lado da batida de Turncrantz. O ritmo crescia sob urros do público. Quando o riff principal começou, as cabeças chacoalharam seguindo o ritmo até o baterista, sob sinistra luz vermelha e ruídos, tocar a entrada de “Harper Lewis”, outra do mesmo disco.
O público acompanhava nas palmas e dava urros a cada mudança de andamento, mas vibrava mesmo quando o Russian Circles pegava pesado em músicas de abordagem mais metálica. Assim, “Conduit”, na sequência, e “Betrayal”, mais à frente, ambas do mais recente e nervoso álbum “Gnosis” (2022), tiveram ótima recepção aos seus riffs mastodônticos e ritmos mais velozes.
Em canções marcadas pelas alternâncias de tempo e sentimentos, sempre sob intenso peso específico do post-metal, o público por vezes dispersava. A levada shoegaze de “Afrika”, do disco “Guidance” (2016), com seu belo riff final, bem como a faixa-título do trabalho mais recente, com Dave Turncrantz moendo seu singelo kit de bateria nos riffs repetitivos do final, eram até recebidas com aplausos, mas sem aquela atmosfera catártica esperada.
Público ansioso por “Youngblood”
Apesar do foco no trabalho mais recente, quase toda a discografia do Russian Circles esteve representada no repertório. De fora, apenas o trabalho de estreia, “Enter”, de 2006, feito quase integralmente de faixas regravadas do EP homônimo do grupo, ainda antes da entrada de Brian Cook.
O baixista, aliás, também era o responsável pelos sintetizadores do ruidoso início de “Quartered”, outra de “Blood Year”, ao qual vai se incorporando a levada de bateria de Turncrantz e aos riffs sobrepostos pela melodia da guitarra de Sullivan. Quando a apresentação aproximava-se de uma hora, o público já se mostrava impaciente e pedia por “Youngblood”, faixa do álbum “Station” e sua música mais popular.
Antes, no entanto, o grupo ainda executou “Deficit”, do álbum “Memorial” (2013), com toda a sua mudança de tempos desde o shoegaze até momentos de peso circulando o metal extremo, com riffs rápidos e ruidosos. Quando finalmente a melodia em tapping no braço da guitarra de Mike Sullivan introduziu “Youngblood”, parecia que a casa ia cair. Após o público acompanhar com palmas sua parte intermediária, todos assistiram embasbacados o seu final. O trio foi ovacionado.
A progressiva “Mlàdek”, do álbum “Empros” (2011) foi executada logo em seguida para encerrar a apresentação com suas cativantes melodias, recebidas sem tanto entusiasmo pelo público já satisfeito. O final barulhento e apoteótico veio com luzes vermelhas quase cegando quem olhava diretamente aos músicos que, apenas acenando seu agradecimento, deixaram o palco e não voltaram.
Apesar de alguma impaciência de parte de quem talvez não esteja acostumado a um show instrumental sem comunicação por parte da banda, a hora e vinte do Russian Circles em cima do palco passou voando. Como estreia no país, o bom público, que esgotou as camisetas da banda no Cine Joia, deixou a impressão de um saldo favorável. Fica o desejo de um breve retorno, quem sabe trazendo todo seu sistema de iluminação.
Russian Circles — ao vivo em São Paulo
- Local: Cine Joia
- Data: 3 de abril de 2024
- Turnê: Gnosis Latin America
Repertório:
- Ghost on High (Intro)
- Station
- Harper Lewis
- Conduit
- Afrika
- Quartered
- Betrayal
- Gnosis
- Deficit
- Youngblood
- Mlàdek
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