Quando Elis Regina disse que preferia cantar em fábrica do que para patrão

Fala da cantora viralizou recentemente, após polêmica de seu uso em um comercial através de inteligência artificial

O recente uso de inteligência artificial para colocar a saudosa Elis Regina junto de sua filha, Maria Rita, em um comercial da Volkswagen, deixou vários fãs desconfortáveis. Não apenas por ver a imagem da cantora reaproveitada com intenções publicitárias sem que ela possa consentir – por motivo óbvio –, mas também por se tratar de uma empresa que teve ligações abertas com a ditadura militar brasileira, contra a qual a artista sempre se posicionou, dentro do que a liberdade de expressão permitia à época.

Para embasar os argumentos, um áudio da saudosa intérprete foi usado nas redes sociais. Na gravação, Elis falava sobre um show que faria em uma fábrica em 1º de maio, dia do trabalho. E criticou a elitização da música brasileira. Conforme transcrição do G1, ela declarou:

“Eu vou cantar numa fábrica dia 1º de maio. (…) o Mario Lago já descolou essa fábrica. Vou levar ‘Saudade do Brasil’ para dentro de uma fábrica. (…) Riocentro não tem operário que consiga chegar porque operário não tem carro para ir ao Riocentro e nem 400 paus para pagar ingresso. Vamos parar de palhaçada, p*rra. (…) Eu não vou a show apresentado por patrão. Cadê a Angela Maria? Cadê o Jamelão? Cadê o Agnaldo Timóteo? Por que essa elitização, c******?”

@cazuzandoexageradoo

Ouça trechos de uma entrevista histórica concedida por Elis Regina nos bastidores do show Saudade Do Brasil, no Canecão, Rio De Janeiro, em 1980. “Não vou a show apresentado por patrão”, diz Elis Regina, que estava fechando uma apresentação do Saudade Do Brasil em uma fábrica operária: “Riocentro não tem operário que consiga chegar, porque operário não tem carro pra ir ao Riocentro e nem quatrocentos pau pra pagar ingresso. Vamos parar de palhaçada, porra!” #elisregina

♬ som original – Cazuza
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Porém, a fala despertou dúvidas quanto à veracidade. Especialmente porque poderia se tratar de outro uso da mesma tecnologia que colocou Elis no comercial supracitado. Em entrevista ao próprio G1, outro filho da cantora, João Marcello Bôscoli, declarou:

“A veracidade, se realmente é ela, eu acredito que seja, mas poxa vida, hoje em dia, com todas as técnicas, não é uma coisa que eu tenha certeza. Tive contato com o registro uns dois ou três anos atrás. Falei com duas pessoas de confiança, contemporâneos dela, mas ninguém podia afirmar.”

Sendo assim, a reportagem do G1 foi atrás de confirmações. Algumas conclusões apontadas foram:

“Mestre em Linguística pela UERJ e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP, a perita e fonoaudióloga forense Renata Christina Vieira comparou o áudio do Youtube (maior que o áudio viral) com entrevistas públicas de Elis Regina. Ela concluiu que o resultado ‘suporta fortemente’ a hipótese de que a voz seja da cantora.

Uma pesquisa no Google pelas expressões usadas na entrevista mostrou que uma tese de doutorado reproduzia a entrevista. Autor da tese, Robson Pereira da Silva mencionou a fala da cantora no trabalho ‘Elis Regina: dou o tiro, quem mata é Deus – Performances da cena e da crítica na construção de uma intérprete do Brasil (1964-1978)’, apresentada na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). ‘Não se trata de uma entrevista publicada. Ela me chegou via áudio’, diz.

À reportagem, Robson deu a primeira pista: a entrevista era real e havia sido concedida em 1980, no Canecão, extinta e tradicional casa de shows na Zona Sul do Rio, para um grupo de repórteres. Sua indicação reforçou a credibilidade para uma versão mais ampla da entrevista, disponível em um canal do Youtube.

O dono do canal, o poeta e escritor Fernando Graça, por sua vez, havia retirado a entrevista de uma página no Facebook chamada ‘Analisando Elis Regina’, formada por fãs da cantora. Fernando deu outra pista: um conhecido dele, o cantor Marco Tonio Muylaert, tinha feito menção, numa conversa, a uma fita com a entrevista de Elis. Uma possível segunda pista. Graça forneceu o contato de Muylaert.”

Último citado, Muylaert revelou ao G1 ter participado como repórter da entrevista, embora não se recorde onde o conteúdo tinha sido publicado. Na época, ele trabalhava para a editora Bloch, em publicações como as revistas “Mulher de Hoje” e “Sétimo Céu”.

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Porém, ele soube contextualizar a fala de Elis: ela estava irritada por ocasião da prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, pela ditadura militar, dias antes, mais especificamente em 19 de abril de 1980. O atual presidente era sindicalista e sua detenção ocorreu por ele tentar intermediar negociações entre trabalhadores e empresários por aumentos salariais no ABC. Acabou solto 31 dias depois, por não haver mandado judicial para justificar a ação.

“Essa fita foi dentro do Canecão, em 81, eu não sei se era 80. Foi durante a temporada do ‘Saudade do Brasil’. E o Lula tinha sido preso, alguma coisa lá do ABC. Tanto que, durante o show, a Elis falava assim: ‘Ao pessoal do A, do B e do C’. E ela estava muito exaltada por causa da prisão do Lula. Ele era apenas do ABC, ele era um sindicalista. Ela ficou muito incomodada com isso. Ela falou: ‘Agora vão soltar os cachorros em cima da gente.’ Era repressão pura. Ela ficou muito incomodada. Mas ela xingou todos os palavrões do mundo.”

Só que ainda faltava um registro concreto da entrevista. E ele foi encontrado através do colecionador de revistas Césio Vital Gaudereto, que mantém o blog “Tudo Isso é TV”. Ele tinha o exemplar de “Sétimo Céu” que comprovava a veracidade da declaração.

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Sobre Elis Regina

Nascida no dia 17 de março de 1945, em Porto Alegre (RS), Elis Regina gravou 18 álbuns de estúdio e 12 ao vivos, se tornando uma das vozes mais icônicas da história da música brasileira. Vendeu cerca de 4 milhões de cópias de seus discos em vida, número que se multiplicou inúmeras vezes após a morte. Morreu em 19 de janeiro de 1982, aos 36 anos.

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João Renato Alves
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João Renato Alves é jornalista, 40 anos, graduado pela Universidade de Cruz Alta (RS) e pós-graduado em Comunicação e Mídias Digitais. Colabora com o Whiplash desde 2002 e administra as páginas da Van do Halen desde 2009. Começou a ouvir Rock na primeira metade dos anos 1990 e nunca mais parou.

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