Como inteligência artificial e “Black Mirror” levaram a greve de atores em Hollywood

Uso da tecnologia no ramo cinematográfico e televisivo tem gerado receios e dúvidas para o futuro da categoria

Após os roteiristas, agora foi a vez do sindicato dos atores dos Estados Unidos também deflagrar greve, o que aconteceu na noite da última sexta-feira (14). Essa é a primeira vez desde os anos 1960 que as duas categorias paralisam suas atividades ao mesmo tempo, o que já está deixando os grandes estúdios bem preocupados.

Existe um motivo em comum que fizeram tanto roteiristas quanto atores de Hollywood optarem pela greve: o uso de inteligência artificial para a produção de filmes, séries e musicais, o que já estaria trazendo muitos receios e dúvidas para o futuro das duas categorias.

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Mas afinal, qual é exatamente essa preocupação de atores e roteiristas com o início do uso da inteligência artificial para as produções audiovisuais? É o que vamos explicar a seguir, além de explorarmos outros tópicos sobre este assunto que ainda deve render bastante.

Inteligência artificial e paralisações

No anúncio da greve, a atriz Fran Drescher, que estrelou a série “The Nanny” nos anos 1990 e é a presidente do Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (SAG-AFTRA, na sigla em inglês), o sindicato que representa mais de 160 mil profissionais do ramo, culpou os responsáveis pela indústria cinematográfica por esta crise envolvendo o uso da IA. 

“O que está acontecendo conosco está acontecendo em todos os campos de trabalho: quando empregadores fazem de Wall Street e ganância sua prioridade e esquecem sobre os contribuidores essenciais que fazem a máquina funcionar.”

Duncan Crabtree-Ireland, o negociador-chefe do SAG-AFTRA, deu mais detalhes sobre a paralisação. Ele afirmou que uma das causas foi o fato de os estúdios de Hollywood desejarem escanear os rostos de artistas e se tornarem donos deles para sempre.

Para piorar, ainda queriam utilizar estas imagens sem qualquer tipo de consentimento de seus donos ou compensação financeira.

“Eles propuseram que nossos figurantes pudessem ser escaneados, ser pagos por um dia de trabalho, e suas empresas seriam donas daquele scan, a imagem deles e os direitos dela, podendo usar pelo resto da eternidade em qualquer projeto que quisessem sem consentimento ou compensação.”

A Alliance of Motion Picture and Television Producers, organização que representa os estúdios de Hollywood, se manifestou em nota, lamentando a decisão das categorias e que ela trará dificuldades para os demais trabalhadores do setor.

“Uma greve certamente não é o cenário que desejávamos, porque os estúdios não conseguem operar sem aqueles que atuam e trazem filmes e programas de TV à vida. O sindicato infelizmente escolheu um caminho que trará dificuldades para milhares de pessoas que dependem da indústria.”

Apenas o sindicato dos diretores de Hollywood não paralisou suas atividades, pois chegou a um acordo com os estúdios em junho. No entanto, também existem os cineastas que apoiam a paralisação de atores e roteiristas.

Foi o caso Lilly Wachowski, codiretora e cocriadora da franquia “Matrix” – um universo que retrata uma guerra entre homens e máquinas, após elas se rebelarem contra a humanidade -, que defendeu a restrição do uso de inteligência artificial na indústria.

“Precisamos mudar a linguagem para deixar implícito que não vamos usar a IA em qualquer departamento, de qualquer show que trabalharmos. Acredito fortemente que esta luta em que estamos agora na nossa indústria é um microcosmo de uma crise muito maior e crítica.”

Episódio de “Black Mirror” serviu de inspiração

Para o Deadline, um integrante não identificado do sindicato dos atores revelou que um episódio da sexta temporada de “Black Mirror”, que foi disponibilizada recentemente pela Netflix, serviu de incentivo para o início da greve.

Atenção: spoilers do capítulo a seguir.

O capítulo em questão se chama “Joan is Awful” (ou “Joan é Péssima”). Nele, a executiva de uma empresa de tecnologia, chamada justamente Joan, descobre que sua vida se tornou enredo de uma série para o streaming Streamberry (que é uma paródia da própria Netflix) sem sua autorização.

Neste show fictício, Joan é interpretada pela atriz Salma Hayek, que também foi prejudicada. Afinal, o capítulo mostra que ela teve sua imagem gerada por inteligência artificial sem o seu consentimento. 

Por fim, é importante ressaltar que na parte final do episódio, descobrimos que é justamente um computador, que fica na sede do Streamberry, o responsável por escrever cada um dos capítulos do show.

Fim dos spoilers.

Por mais que seja um trabalho fictício, o enredo deste capítulo de “Black Mirror” praticamente reflete coisas que estão ganhando cada vez mais forma na realidade. Foi o suficiente para acender este alerta entre atores e atrizes de Hollywood. 

Já que acabamos de citar a Netflix, é importante lembrar que a empresa e suas concorrentes também foram a outra causa da greve dos atores. A categoria afirma ser menos recompensada no streaming, além de receber royalties menores, já que a venda de DVDs e reexibição de filmes na TV – que contribuíam para os ganhos dos artistas – está caindo cada vez mais por conta dessas plataformas.

Guerra de narrativas

Claro, o início de mais uma greve inflamou ainda mais esse debate sobre o uso da inteligência artificial para produções cinematográficas e televisivas, com cada lado defendendo seu ponto de vista.

O veterano Sean Penn saiu em defesa dos roteiristas, antes da greve dos atores, ao afirmar que o uso da inteligência artificial para o desenvolvimento de roteiros é uma “obscenidade humana”.

Já Billy Ray, roteirista dos filmes da franquia “Jogos Vorazes”, acredita que o uso da IA para que os estúdios economizem pode alienar o público e causar a falência dessas empresas, o que deixará, segundo ele, TikTok e YouTube como únicas sobreviventes no meio.

“Sem mais ‘O Poderoso Chefão’, sem mais ‘O Mágico de Oz’, só teremos clipes de 15 segundos com tolice humana.”

Outro argumento defendido pelos defensores da causa é o de que a inteligência artificial não será capaz de produzir histórias humanizadas. É o que afirma Diandre Pendleton-Thompson, que escreveu diversos episódios de “Star Trek”.

“Vamos ter histórias de pessoas que perderam seu poder e contadas pela voz de um algoritmo ao invés de pessoas que realmente as vivenciaram.”

O cartaz de um grevista também ficou famoso por querer dizer algo bem parecido, de forma simples e resumida.

“ChatGPT não teve traumas de infância.”

Por outro lado, também há aqueles que não estão sensibilizados com a causa – incluindo até mesmo quem trabalha no ramo.

Durante um evento sobre IA realizado recentemente em Los Angeles, que teve o tema entre seus destaques, Robert Legato, que trabalhou com efeitos especiais de filmes como “Titanic” e “O Rei Leão”, lançou a seguinte crítica ao movimento com toques irônicos:

“As pessoas que a odeiam (a inteligência artificial) ou que têm medo dela estão inseguras sobre seu próprio talento.”

Pinar Sehan Demirdag, uma artista que se tornou empreendedor da área de IA, também aproveitou o mesmo evento para fazer outra ironia.

“Se você se sente confiante, você irá se sobressair. Se você se sente inferior…”

Já Mike Gioia, executivo da Pickaxe, empresa que desenvolveu uma plataforma de IA justamente para ajudar roteiristas, não acredita que a inteligência artificial irá substituir esses profissionais em breve.

“Quando as pessoas me dizem que os estúdios vão substituir roteiristas com a IA, para mim, essas pessoas nunca tentaram fazer algo realmente difícil com os enormes modelos de linguagem. O pior cenário para os roteiristas é que o tamanho da sala deles será menor.”

Gioia ainda afirmou que a IA “não tem a coragem de tentar escrever algo verdadeiramente humano” e que é pura “ficção científica” acreditar que a tecnologia conseguirá desenvolver roteiros completos.

Os impactos das paralisações

Obviamente, o principal impacto das duas paralisações é o fato de que muitas produções de Hollywood que estão em desenvolvimento encontram-se com seus trabalhos paralisados.

Por exemplo, Amy Pascal, uma das produtoras dos filmes do Homem-Aranha, confirmou recentemente o quarto filme do herói para o Universo Cinematográfico Marvel. No entanto, junto da novidade, também revelou que os trabalhos estão paralisados justamene por conta da greve dos roteiristas – a dos atores ainda não havia sido deflagrada. 

A paralisação também afetará, com menor impacto, filmes que já estão prontos. Por exemplo, parte do elenco do aguardado “Oppenheimer”, novo trabalho do diretor Christopher Nolan, decidiu abrir mão de participar das sessões de estreia do longa justamente para apoiar a greve. Entre eles, estão nomes como Cillian Murphy, Emily Blunt e Florence Pugh. 

O mesmo também deve acontecer com “Barbie”, que estreia junto de “Oppenheimer”. Antes do anúncio da greve dos atores, Margot Robbie, a grande estrela do filme, revelou que se a paralisação fosse mesmo confirmada, se juntaria ao movimento.

“Eu apoio bastante todas as uniões e sou integrante do sindicato, então eu absolutamente fico do lado dele.”

Preocupação também no mundo da música

Vale ressaltar que não são apenas os atores e roteiristas de Hollywood que estão preocupados com a ascensão da inteligência artificial: os artistas da música também já demonstram seus receios.

Um dos estopins para essa preocupação veio com a música “Heart On My Sleeve” que possui vocais dos rappers Drake e The Weeknd, reproduzidas por uma IA treinada para cantar com as vozes dos dois artistas.

A canção já foi reproduzida mais de 8 milhões de vezes no TikTok e executada outras 254 mil no Spotify, além de gerar as mais variadas reações entre o público.

Não demorou muito para os artistas do ramo também demonstrarem seu descontentamento. Uma coalização de músicos lançou a chamada “Campanha de Arte Humana”, criada justamente para impedir que a inteligência artificial “corroa” a criatividade humana, e que recebeu o apoio de organizações importantes, como a Associação Americana da Indústria de Gravação.

Vocalista e baixista do Kiss, Gene Simmons resumiu a preocupação de muitos artistas com relação ao tema: a falta de legislação competente. Em entrevista ao Piers Morgan Uncensored, transcrita pelo Blabbermouth, ele afirmou:

“Além do negócio da música, estou preocupado com a falta de legislação. Quando você entra em um novo planeta, claramente há uma oportunidade lá. Porém, também é como jogar esportes sem regras. Quem vai fazer o quê? Você precisa de algumas regras que sejam gentis e benéficas.”

O músico foi mais a fundo e usou o que pode vir a ser um exemplo pessoal para explicar a necessidade de definições do ponto de vista jurídico.

“A IA está aqui, goste você ou não. Então, vamos olhar para isso com inteligência e aprovar a legislação. Se alguém cria uma música usando minha voz, ou o que soa como minha voz, por exemplo. Então, quando você compra, quem é o dono dos direitos autorais e da publicação, se a IA fez isso? É esse tipo de território ainda desconhecido que precisamos explorar.”

Só resta esperar para descobrirmos quais serão os próximos capítulos deste assunto que ainda irá render muitas discussões. 

*Artigo redigido com base nas seguintes fontes: Superinteressante, The Guardian, Business Today e G1.

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Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atua no mercado desde 2013 e já realizou trabalhos como assessor de imprensa, redator, repórter web e analista de marketing. É fã de esportes, tecnologia, música e cultura pop, mas sempre aberto a adquirir qualquer tipo de conhecimento.

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