A influência de um genocídio sobre a estreia do System of a Down

Quarteto de Los Angeles foi moldado pelo trauma geracional de seu povo - e fez o mundo se conscientizar disso

A segunda metade dos anos 1990 foi marcada como o período em que o metal mais passou por mudanças, incorporando elementos de música experimental, eletrônica e hip hop. Essa combinação, apelidada de nu metal, deu vazão a artistas extremamente populares, como Deftones, Slipknot, Korn e Linkin Park.

Entretanto, uma banda surgida nesse período se diferenciava do resto por algumas razões. Primeiro, eles eram um grupo tradicional de metal, não incorporando tantos elementos de hip hop e eletrônica ao som. Preferiam beber bastante da fonte experimental de artistas como Faith No More e Frank Zappa.

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Segundo, em uma geração de artistas cuja motivação parecia ser apenas niilismo, eles eram tão politizados quanto o Rage Against the Machine. Isso vem em grande parte da origem dos integrantes, todos descendentes de um genocídio ocorrido décadas antes e que as potências do mundo se recusavam a reconhecer.

Eles combinavam humor nonsense, emoção operática, ganchos matadores e uma consciência política fortíssima.

Hora de falar do System of a Down.

Sobreviventes

É impossível falar sobre o System of a Down sem antes falar do genocídio do povo armênio pelas mãos do Império Otomano entre 1915 e 1917. Cerca de um milhão de pessoas morreram em massacres e marchas pelo deserto da Síria. Além disso, mulheres e crianças foram convertidas à força ao islamismo.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Armênia recebeu sua independência através do Tratado de Sèvres em 1920, mas tropas nacionalistas turcas mataram mais de 100 mil armênios tentando retornar ao lar. A única coisa que acabou impedindo a erradicação total da população foi a incorporação do território à União Soviética. Além disso, ainda havia um número incontável de sobreviventes espalhados pelo Oriente Médio, forçados a viver longe de sua terra natal.

Vartan Malakian, filho de um sobrevivente do genocídio, nasceu em Mosul, no Iraque, antes que o regime de Saddam Hussein forçasse sua família a procurar exílio no Líbano. Lá, ele conheceu Zepur, outra descendente de armênios, e os dois foram tentar a sorte nos Estados Unidos, onde tiveram um filho, Daron Malakian. Ele se interessaria por guitarra desde cedo, influenciado por bandas como Kiss.

Shavo Odadjian nasceu na Armênia, aquela que nasceu em 1920 e se tornou parte da União Soviética, deixando de ser independente para sobreviver. Sua família deixou a Cortina de Ferro para trás no fim da década de 1970, quando ele tinha apenas cinco anos de idade. O destino? Estados Unidos.

O Líbano acabou sendo um porto seguro onde as famílias de dois outros integrantes do System of a Down encontraram refúgio. Tanto o vocalista Serj Tankian quanto o baterista John Dolmayan nasceram lá, filhos de sobreviventes do genocídio, sendo capazes de traçar suas linhagens a vários lugares do Império Otomano de onde foram forçados a deixar.

Suas famílias eventualmente encontraram um lar na Califórnia. O estado americano começou a receber imigrantes armênios em 1874, fugindo de perseguição política. Esse processo foi facilitado devido ao intercâmbio entre missionários e essa população devido ao trabalho feito por igrejas americanas no Império Otomano.

A população se estabeleceu no vale central do estado, principalmente na cidade de Fresno, onde a produção agrícola se concentrava. Décadas depois, refugiados do genocídio começaram a ocupar terras mais ao sul, especialmente em Los Angeles. 

Em 1969, Rose Pilibos, viúva de um dos maiores produtores de melão da Califórnia, estabeleceu uma escola voltada para a população armênia em Los Angeles. Tankian, Malakian e Odadjian tiveram sua educação fundamental lá, ainda que em épocas diferentes – Serj é oito anos mais velho que os outros dois.

Encontros

Serj Tankian havia feito faculdade de marketing, onde se destacou também por seu ativismo em prol do reconhecimento do genocídio armênio pelo governo americano. Após a formatura, ele estava trabalhando para seu tio e contemplando estudar direito até chutar o balde e ir atrás de uma carreira musical.

Tankian e Daron Malakian finalmente se conheceram em 1992, quando ambos estavam no mesmo estúdio, trabalhando em projetos separados. Eles rapidamente formaram um grupo chamado Soil com o baixista Dave Hakopyan e o baterista Domingo “Dingo” Laranio. Shavo Odadjian foi contratado como o empresário da banda, mas logo se tornou o segundo guitarrista. 

Em uma entrevista de 2005 para o Campus Circle, Shavo contou sobre sua entrada para o grupo:

“Eu era empresário da banda e nós não tínhamos demo, não tínhamos dinheiro, mas a gente queria fazer um show. Eu estava trabalhando no banco First Interstate e entre transferências, eu ligava pro Roxy: ‘Ei, será que a gente pode fazer um show? Eddie, dá um show pra gente’. Ele dizia: ‘Eu preciso de uma fita demo, não posso simplesmente dar um show assim’. Dava cinco minutos, eu ligava de novo. Um dia, o Roxy simplesmente estourou e disse: ‘Tá bom! Vai vender 75 ingressos’. A gente vendeu 150.”

Essa formação durou apenas um show.

Hakopyan e Laranio decidiram sair do grupo, e os três remanescentes formaram o System of a Down. O nome veio de um poema escrito por Malakian intitulado “Victims of a Down” alterado para System por sugestâo de Odadjian. A formação se fechou com Serj nos vocais e teclados, Daron na guitarra e vocais, Shavo no baixo e Ontronik “Andy” Khachaturian na bateria, completando a formação.

Numa entrevista de novembro de 2000 para a NYRock, Tankian falou sobre a influência nele e na banda dessas origens, do genocídio e os caminhos tortuosos seguidos pelos sobreviventes:

“Meu avô me contou muito sobre ele, como ele escapou e sua família inteira foi morta. Eu cresci com isso e isso influenciou meu pensamento. O fato que a banda compartilha dessas raízes, a mesma herança armênia, é um elo nosso. De um jeito somos todos excluídos vemos muitas coisas dessa posição. Vemos as coisas com uma perspectiva de fora e essa perspectiva geralmente é mais clara.”

Ralação

Essa perspectiva incluía uma combinação de gêneros inusitada para a época. 1995 ainda era o auge do grunge, com artistas como Soundgarden e Pearl Jam no auge, além do Metallica fazendo a transição do metal para um som mais rock mainstream no ano seguinte com “Load”. 

Daron Malakian era devoto de bandas thrash como Slayer e Venom, além de nomes mais associados ao groove metal, tal qual Pantera e Sepultura. Ele também tinha uma apreciação enorme por bandas inglesas dos anos 60 e a combinação de riffs e melodia. Por outro lado, Serj Tankian trazia uma sensibilidade mais experimental, tendo sido criado ouvindo apenas música tradicional armênia quando criança, e crescendo para descobrir Frank Zappa, Beatles e Faith No More.

O resultado disso era um som inclassificável por si, mas capaz de ser rotulado como metal alternativo. Era uma perspectiva de fora mesmo. Eles lançaram sua primeira demo, “Untitled 1995 Demo Tape”, seguida de outras duas em 1996 e 1997. Além disso, estavam juntando público em Los Angeles fora da bolha armênia, sendo capazes de tocar em clubes lendários como o Whiskey-a-Go-Go e o Viper Room. 

Entretanto, numa entrevista para a Metal Hammer, Tankian falou sobre os desafios de conseguirem ser assinados nesse ambiente:

“Deu muito trabalho. Muitos selos estavam bem reticentes de assinar com a gente. ‘Quem vai tocar essa música no rádio?’. Nós nunca pensamos sobre isso. A gente só fazia a nossa música, porque é isso que artista faz. Estávamos em turnê eterna nos primeiros anos. Eu não lembro de estar em casa. Mas era mais divertido para mim. Sempre que você está trabalhando na sua visão e você está no lugar certo na hora certa, será divertido. Porque o universo está conspirando com você, né?”

Parte dessa conspiração foi uma lesão na mão que fez Khachatourian deixar a banda em 1997, abrindo espaço para John Dolmayan ocupar seu lugar. A formação do SOAD agora estava fechada.

A primeira gravação oficial do grupo foi uma versão de “P.L.U.C.K.” – regravada depois no disco de estreia – como parte da compilação “Hye Enk” (tradução: “Somos Armênios”), em prol do reconhecimento do genocídio pelo governo americano.

O System of a Down teve sua grande chance em 1997 quando o mega produtor Rick Rubin, motivado pelo boca-a-boca em torno dos shows, assistiu à banda no Viper Room. Ele se impressionou o suficiente a ponto de oferecer assinar o grupo para a American Recordings após uma quarta fita demo ser enviada para gravadoras.

Em 2009, Rubin falou à revista Q sobre sua motivação para conseguir um contrato para a banda:

“Eu adorava eles. Eles eram minha banda preferida, mas eu não achava que alguém iria gostar deles além do grupo pequeno de pessoas como eu, que são doidas. Ninguém estava esperando por uma banda de heavy metal armênia. Teria que ser tão boa a ponto de transcender isso.”

Entretanto, a banda quase não assinou com Rubin. Malakian contou em entrevista para o livro “Barulho Infernal” que elesestavam negociando com outra gravadora:

“A gente ia assinar com a Universal. Mas aí fomos nos escritórios deles, olhamos os pôsteres nas paredes e percebemos que não havia bandas de rock, ou até mesmo pessoas capazes de saber o que era rock. Era bem uma cultura hip-hop/R&B sendo construída ali. Assim que saímos da reunião, a gente falou: ‘Sabe, cara, a gente devia simplesmente ir com o Rick. Ele acredita na gente e não está seguindo nenhuma tendência. Ele tá seguindo seu instinto’.”

Contando a história

O System of a Down entrou no estúdio com Rubin e a engenheira de som Sylvia Massy, famosa por seu trabalho com os gigantes do metal progressivo Tool. Tankian contou à Metal Hammer que a receita para as gravações era simples:

“Eu lembro que a ideia do Rick era: ‘Vocês são tão loucos no palco, em termos de som e dinâmica, eu quero gravar como é, o mais ao vivo possível’. Aquele primeiro disco definitivamente te faz sentir que você está num show. E a gente trabalhou com Sylvia Massy, que era nossa engenheira na época. Nós tínhamos uma equipe de estrelas. Estávamos em ótimas mãos.”

O System of a Down se viu livre para botar as mangas de fora. Nenhum tema estava proibido: as músicas falavam sobre o genocídio armênio, extremismo religioso, escândalos de pedofilia na Igreja, programas de lavagem cerebral da CIA, além da cultura de drogas no Ocidente.

O álbum de estreia, também chamado “System of a Down”, saiu dia 30 de junho – antecipado pelo single “Sugar”, lançado 24 de maio. A capa trazuma imagem tirada de um pôster antifascista distribuído pelo Partido Comunista da Alemanha e criado pelo artista visual John Hartfield.

O pôster original carregava o slogan “Uma mão tem 5 dedos! Com esses 5 agarre o inimigo!”. O System of a Down adaptou essa frase, colocando na contracapa do disco os dizeres:

“The hand has five fingers, capable and powerful, with the ability to destroy as well as create.”

[“A mão tem cinco dedos, capazes e poderosos, com a habilidade de destruir tanto quanto criar.”]

“Sugar” e o segundo single, “Spiders”, se tornaram populares o suficiente em rádios e na MTV para o grupo vender relativamente bem na estreia. Numa entrevista para o Shoutweb (via Revolver), John Dolmayan comentou sobre a surpresa em torno disso:

“Nós nunca esperamos que ‘Sugar’ ou ‘Spiders’ fossem abraçadas pela MTV ou que tocassem no rádio. Nunca esperamos nada nosso no rádio. A gente pensava que seríamos uma banda bem underground. Mas por alguma razão, o mainstream meio que nos aceitou. Eu acho que estamos expandindo os limites do mainstream, o que é bom. Isso deixa músicas que não necessariamente seriam escutadas por muitas pessoas serem ouvidas. E isso vai empurrar para a próxima geração também.”

Eles caíram na estrada imediatamente, abrindo para o Slayer. Quando a turnê os levou para a Turquia, eles mantiveram sua consciência política, se recusando a tocar no país. Ao NYRock, Tankian comentou a decisão de boicotar o show:

“Não poderíamos ter nos apresentado lá sem falar do ocorrido [o genocídio armênio] e teríamos ido para a cadeia por isso. Prisão na Turquia é bem difícil. Não acho que nossa gravadora tiraria a gente dessa. Então decidimos cancelar o show. Tocar lá e não falar no assunto seria hipócrita de nossa parte.”

Ao longo dos dois anos seguintes, enquanto o nu metal ascendia ao mainstream, o System of a Down continuou a crescer graças ao seu disco de estreia, culminando no sucesso enorme de seu segundo álbum, “Toxicity”, lançado em 2001. 

O grupo seguiu essa onda lançando mais três trabalhos extremamente bem-sucedidos – “Steal This Album!” e a dupla “Mesmerize” / “Hypnotize” – antes de entrarem em hiato em 2006. Eles retornaram para shows aqui e ali, mas o legado já estava estabelecido.

E talvez o maior feito desse legado finalmente foi conseguido em 2021, quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu em nome do país o genocídio armênio.

System of a Down – “System of a Down”

  • Lançado em 30 de junho de 1998 pela American / Columbia
  • Produzido por Rick Rubin e System of a Down

Faixas:

  1. Suite-Pee
  2. Know
  3. Sugar
  4. Suggestions
  5. Spiders
  6. DDevil
  7. Soil
  8. War?
  9. Mind
  10. Peephole
  11. CUBErt
  12. Darts
  13. P.L.U.C.K. (Politically Lying, Unholy, Cowardly Killers)

Músicos:

  • Serj Tankian (voz, teclados, samples)
  • Daron Malakian (guitarra, voz)
  • Shavo Odadjian (baixo)
  • John Dolmayan (bateria)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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