A revolução provocada pelos Beatles não foi apenas musical: também foi, de certa forma, comportamental. Logo na primeira turnê da banda pela América do Norte, em 1964, eles se recusaram a fazer um show com plateia segregada entre brancos e negros, obrigando o contratante a mudar seus planos racistas, tão comuns naquele período.
O show em questão aconteceu no estádio Gator Bowl, em Jacksonville, Flórida, Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 1964. A banda já havia tocado no país em fevereiro, mas apenas em algumas cidades. Antes do ano em questão, as turnês ficavam restritas à Europa.
Nesta segunda passagem pelos Estados Unidos, que também contemplou o Canadá, rolaram dezenas de shows. O rock and roll de Elvis Presley, Chuck Berry e Little Richard já havia quebrado a regra racista de plateias segregadas em diversos locais, mas em Jacksonville, os shows ainda aconteciam com separação de público.
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Aquela escrita se quebrou com os Beatles. A banda se recusou a subir no palco até que o promotor do show garantisse que não haveria segregação racial na plateia. A exigência foi atendida.
Na época, John Lennon declarou: “Nunca iremos tocar para plateias segregadas e não vamos começar a fazer isso agora. Prefiro perder o dinheiro do show a fazer isso”.
Em registro recente para o documentário ‘The Beatles: Eight Days A Week’, o jornalista Larry Kane se recordou da situação: “Os quatro começaram a reagir contra essa questão de forma muito, muito sensitiva, cientes de que aquilo iria irritar vários americanos”.
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A situação foi relembrada por Paul McCartney, em uma publicação também recente nas redes sociais, onde se manifesta sobre o assassinato de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos. A morte de Floyd motivou uma série de protestos, não só no país, como em todo o mundo.
“Em 1964, os Beatles tocariam em Jacksonville, nos Estados Unidos, e descobrimos que o show seria feito para uma plateia segregada. Parecia errado. Falamos: ‘não vamos fazer isso!’. E o show que fizemos foi o primeiro de Jacksonville sem plateia segregada. Então, passamos a garantir que essa exigência estivesse em todos os contratos de shows. Para nós, parecia bom senso”, afirmou.
Fazia sentido, mesmo em um período onde o racismo era “normal”. A influência da música negra no trabalho dos Beatles é imensurável e reconhecida por eles próprios. Não à toa, canções de artistas negros, como ‘Long Tall Sally’ (Little Richard), ‘Twist and Shout’ (The Top Notes), ‘Roll Over Beethoven’ (Chuck Berry) e ‘Boys’ (The Shirelles) eram tocadas pela banda na época e naquele show.
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Como curiosidade, vale destacar que, além dos quatro covers, os Beatles tocaram várias músicas do álbum ‘A Hard Day’s Night’, como ‘Can’t Buy Me Love’, ‘If I Fell’ e a faixa-título, bem como materiais de outros períodos, como ‘I Want to Hold Your Hand’ e ‘All My Loving’. Não existem filmagens desse show, já que a banda também exigiu que equipamentos de rádio e TV, como gravadoras e câmeras, não fossem utilizados durante o show. O motivo, segundo eles, é que esses veículos acabariam captando o material para venda posterior sem pagar os devidos direitos autorais.
A performance, curta, teve apenas 12 canções e foi realizada em meio a uma ventania – um furacão passou pelo estado da Flórida um dia antes da apresentação. Mas quem disse que um show histórico precisa ser longo?
“Tocávamos para as pessoas, é o que fazíamos. Não tocávamos para um ou outro tipo de pessoa, entende? Apenas fazíamos shows para as pessoas”, afirma Ringo Starr, em filmagem recente do documentário ‘The Beatles: Eight Days A Week’.