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A história de “Help!”, disco que simbolizou a perda da inocência dos Beatles

Contato com Dylan, primeira viagem de LSD e desolação lírica como em "Yesterday" fizeram do álbum um rito de passagem à vida adulta da banda

Quando um dissimulado John Lennon cantou “When I was younger, so much younger than today…” (“Quando eu era jovem, muito mais jovem que hoje”, na tradução livre em português) e admitiu não ser mais tão seguro de si mesmo (“I’m not so self assured”), pouca gente percebeu que o pedido de socorro (“help!”) não era mais motivado apenas por um coração partido. Os Beatles estavam se afastando da estética adolescente rumo à vida adulta. E sua música, também.

Lançado em 6 de agosto de 1965, “Help!”, primeiro disco da banda naquele ano e quinto no geral, reluziu não somente um mero amadurecimento, mas a perda da inocência de quatro jovens que operavam como antena da época, antecipando descobertas, euforias e anseios de toda uma geração. Agora, Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr usavam drogas e começavam a se encantar com um mundo de possibilidades; fora do estúdio, mas também dentro dele.

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Se no ano anterior os Beatles haviam tido seu primeiro contato com Bob Dylan, que lhes aplicou a maconha, em 1965 a bola da vez era o LSD. A viagem inaugural de ácido deu uma escalada na busca por novas percepções e exerceu impacto preponderante na obra vindoura dos garotos de Liverpool, prontos para explorar a maioridade artística — por vezes, dolorosa. “Yesterday”, com uma desolação lírica até então sem precedentes no universo do Fab Four, ajudou a descortinar o rito de passagem.

De Bob Dylan à cannabis

Ao longo dos anos 1960, Bob Dylan e Beatles se retroalimentaram, mas no início da década foi o cantor e compositor nascido no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, que exerceu maior poder de influência na relação. Dylan tinha forte ascendência, principalmente, sobre John Lennon, à época o protagonista mais ativo da parceria Lennon-McCartney — isso viria a se inverter em um futuro não tão distante.

Desta forma, foi natural que o primeiro contato pessoal e presencial entre eles, promovido pelo jornalista Al Aronowitz em agosto de 1964, tenha marcado de forma decisiva a mudança de mentalidade dos quatro ingleses, em especial Lennon. Como principal letrista do grupo, o guitarrista passou a adotar um tom mais confessional nas canções, incluindo o já citado pedido de socorro na faixa-título de “Help!”.

De acordo com o jornalista e escritor Mark Hertsgaard, autor da biografia “A Day in the Life: The Music and Artistry of the Beatles” (1995), embora a influência de Dylan tenha sido “evidente” no disco “Beatles for Sale”, lançado em dezembro de 1964, foi em “Help!” que ela se tornou “totalmente realizada”.

Além disso, foi Dylan que introduziu a maconha ao cardápio dos garotos de Liverpool, os quais passaram a apreciar e consumir a nova iguaria com frequência. Durante as filmagens do filme “Help!”, que saiu pouco antes do disco e tinha as canções de Lennon como carro-chefe — “Help!”, “Ticket to Ride” e “You’re Going to Lose That Girl” —, o consumo de cannabis era recorrente.

Em entrevista a David Sheff em setembro de 1980, publicada na edição de janeiro de 1981 da revista Playboy, Johh Lennon relembrou o período:

“Estávamos fumando maconha até no café da manhã. Ficávamos bem chapados de maconha e ninguém conseguia se comunicar conosco porque estávamos sempre de olhos vidrados e rindo o tempo todo. Em nosso próprio mundo. Isso era a música “Help!”. Acho que tudo que sai de uma música — até mesmo as músicas de Paul agora (1980), que aparentemente não falam de nada — mostra algo sobre você.”

Ainda em “Help!”, a canção, Lennon canta “My independence seems to vanish in the haze” (“Minha independência parece estar desaparecendo na névoa”). No entanto, Dylan e a fumaça da combustão de THC não seriam os únicos catalisadores de “Help!”…

A primeira viagem de ácido

Em abril de 1965, John Lennon e George Harrison, acompanhados de suas respectivas esposas, Cynthia Lennon e Pattie Boyd, tomaram LSD pela primeira vez — e por engano. Eles foram, literalmente, dopados por John Riley, dentista de Harrison e outras celebridades, que dissolveu cubos de açúcar batizados com ácido ao servir café para os casais após um jantar em seu apartamento, em Londres.

Porém, mesmo que involuntariamente, pode-se dizer que poucas experiências tiveram tanto impacto na trajetória dos Beatles como essa. George Harrison, arrebatado pela epifania lisérgica, foi o primeiro a cair de amores pelo LSD, como relatou depois em uma clássica declaração à Rolling Stone:

“Eu tive uma sensação avassaladora de bem-estar, de que havia um Deus, e eu conseguia vê-lo em cada folha de grama. Era como ganhar centenas de anos de experiência em apenas 12 horas.”

No verão, Lennon e Harrison voltaram a tomar LSD, desta vez deliberadamente e na companhia de David Crosby e Roger McGuinn, dos Byrds, na Califórnia. Em agosto, foi a vez de Ringo Starr ser apresentado ao doce. Relutante em um primeiro momento, Paul McCartney só seria iniciado no novo barato em 1966, mas depois se tornaria uma espécie de porta-voz em prol da expansão da consciência por essa via.

Musicalmente falando, os efeitos do “teste de ácido” dos Beatles seriam sentidos de forma mais contundente em “Revolver” (1966) e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967), mas a experiência em si coincide justamente com o período de gravação de “Help!”, cujas sessões aconteceram entre fevereiro e junho de 1965.

Em “Beatles Anthology”, um emocionado George Harrison dá a dimensão do rito de passagem que o LSD representou na época do disco:

“John e eu decidimos que Paul e Ringo tinham que tomar ácido, porque não conseguíamos mais nos conectar com eles. Não só em um nível, mas em nenhum nível, pois o ácido havia nos afetado muito. Era uma experiência tão grande que chegava a ser inexplicável: algo que precisava ser experimentado, pois você podia passar o resto da vida tentando explicar o que aquilo lhe fazia sentir e pensar.”

“Yesterday” e além

John Lennon compôs “Help!” duas semanas após a primeira viagem de LSD. A música foi gravada em 13 de abril, em uma sessão de quatro horas nos estúdios da rua Abbey Road, que na época ainda não levavam esse nome, mas EMI Recording Studios.

Tanto a canção como o disco, em geral, não são exatamente um pináculo da psicodelia, mas vários momentos já apontavam para o experimentalismo que dobrava a esquina. Sete das 14 faixas — ou seja, metade do repertório — contaram com instrumentos que os Beatles nunca haviam usado em estúdio até então, incluindo piano elétrico, flauta e um quarteto de cordas ( com violoncelo, viola e dois violinos).

“You’ve Got to Hide Your Love Away”, que John Lennon definiu como um exemplo perfeito de seu “período Dylan”, trazia John Scott tocando flauta. A letra é uma das mais enigmáticas da banda e inaugurou um novo patamar emocional.

“Ticket to Ride” foi o primeiro single dos Beatles a ter mais de três minutos de duração. Apesar do apelo comercial — chegou ao topo das paradas tanto nos EUA como no Reino Unido —, apresentou inovações impressionantes em várias frentes: na batida da bateria, nas mudanças sofisticadas de andamento, no peso quase proto-heavy metal e no uso de técnicas pioneiras de estúdio como drones e overdubs.

George Harrison contribuiu com duas composições: “I Need You” e “You Like Me Too Much”. Há também dois covers no tracklist: “Act Naturally” (Morrison-Russell), cantado por Ringo, e “Dizzy Miss Lizzy”, de Larry Williams. Ambas foram as duas últimas releituras inseridas pelos Beatles em um de seus álbuns até “Maggie Mae”, no derradeiro “Let it Be” (1970).

O arremate com “Yesterday”, no entanto, foi a cereja do bolo em “Help!”. Considerada a menina dos olhos de Paul McCartney, a canção surgiu de um sonho e foi inteiramente idealizada por ele, contando apenas com o acréscimo do quarteto de cordas, uma sugestão do produtor George Martin. Dolorosamente emotiva, ela sacramenta a travessia dos Beatles rumo à vida adulta, tendo de lidar com a dor, a perda e o luto — referindo-se, provavelmente, à morte da mãe de Paul, quando ele tinha 14 anos.

“Acordei uma manhã com uma melodia na cabeça e pensei: ‘Ei, eu não conheço essa melodia — ou conheço?’. Era como uma melodia de jazz. Meu pai conhecia muitas músicas antigas de jazz. Pensei que talvez tivesse me lembrado do passado. Fui até o piano e encontrei os acordes, confirmei que me lembrava e a mostrei para meus amigos, perguntando: ‘Vocês conhecem essa? É uma musiquinha boa.”

“Yesterday” se tornou a canção com mais versões registradas na história da música. De certa forma, ela também pode ser intrepretada como o embrião da virada de Paul sobre John no que se refere ao grau de importância na parceria Lennon-McCartney.

Pouco após o lançamento do disco, em 15 de agosto os Beatles tocaram para 55,6 mil pessoas no Shea Stadium, em Nova York, estabelecendo o recorde de público em um único show – o qual só seria quebrado em 1973, pelo Led Zeppelin — e antecipando em quase uma década a era dos eventos em estádio.

No ano seguinte, porém, o quarteto se aposentaria para sempre das turnês. Após perder a inocência com “Help!”, nada mais seria igual para a banda.

Beatles — “Help!”

  • Lançado em 6 de agosto de 1965 pela Parlophone
  • Produzido por George Martin

Faixas:

  1. Help!
  2. The Night Before
  3. You’ve Got to Hide Your Love Away
  4. I Need You
  5. Another Girl
  6. You’re Going to Lose That Girl
  7. Ticket to Ride
  8. Act Naturally (Morrison-Russell)
  9. It’s Only Love
  10. You Like Me Too Much
  11. Tell Me What You See
  12. I’ve Just Seen a Face
  13. Yesterday
  14. Dizzy Miss Lizzy (Larry Williams)

Músicos:

  • John Lennon (vocais, guitarra, violão, órgão em “Dizzy Miss Lizzy”, pandeiro em “Tell Me What You See”, caixa em “I Need You”)
  • Paul McCartney (vocais, baixo, violão, guitarra, piano, piano elétrico)
  • George Harrison (guitarra, violão, backing vocals, vocais principais em “I Need You” e “You Like Me Too Much”; güiro em “Tell Me What You See”)
  • Ringo Starr (bateria, percussão, claves em “Tell Me What You See”, vocais principais em “Act Naturally”)

Músicos adicionais:

  • George Martin (piano em “You Like Me Too Much”)
  • John Scott (flautas tenor e contralto em “You’ve Got to Hide Your Love Away”)
  • Quarteto de cordas em “Yesterday”, arranjado por Martin em associação com McCartney

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room, Rock Brigade e Guitarload. Atualmente, é redator na Rolling Stone, revisa livros das editoras Belas Letras e Estética Torta e edita o Morbus Zine, dedicado a resenhas de death metal e grindcore.

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