Há muito tempo os Rolling Stones são mencionados como referência de “banda longeva”. Com méritos: os octogenários Mick Jagger e Keith Richards seguem muito bem nos palcos ao lado de Ronnie Wood, 77 anos, e músicos de apoio. Mas já está na hora de tratar o Deep Purple, também, como sinônimo de grupo imparável — até porque, no que diz respeito a ritmo de atividades, eles deixam os Stones no chinelo.
Ian Gillan (voz, 79 anos), Roger Glover (baixo, 78), Ian Paice (bateria, 76) e Don Airey (teclados, 76), acompanhados desde 2022 pelo “novinho” Simon McBride (guitarra, 44) não apenas se mantêm nos palcos, como cumprem uma agenda bem mais intensa que a de Jagger, Richards e Wood. Só neste ano, realizaram mais de 45 shows na América do Norte, Europa, Ásia e, agora, América do Sul. Desde a retomada pós-pandemia (2022 até agora), foram mais de 140 performances.
Estamos falando de, em média, uma apresentação por semana. Considerando que há merecidos períodos de férias e hiatos na estrada para gravar material novo — o ótimo novo álbum “=1” saiu em julho último —, o intervalo é ainda menor. Some isso a cansativas viagens, pois trata-se de uma banda de alcance mundial.
A “fome” por atividades é tamanha que eles próprios admitem ter dispensado Steve Morse para que pudessem seguir em frente. O guitarrista, integrante desde 1994, havia se afastado para cuidar de sua esposa, diagnosticada com câncer. McBride foi trazido temporariamente, mas quando o americano pediu mais tempo fora — o que também atrasaria sessões de gravação —, o norte-irlandês foi efetivado. Glover afirma que era Morse a voz mais ativa na aposentadoria do grupo, que chegou a ser anunciada para após a turnê “The Long Goodbye”, mas jamais cumprida.
Os fãs não reclamam de serem enganados. Especialmente aqueles milhares presentes no Espaço Unimed, em São Paulo, na última sexta-feira (13), para assisti-los ao vivo. Foi a 14ª visita da lendária banda à maior cidade do hemisfério sul e o 27º show por aqui, já que, nos anos 1990 e 2000, era normal que realizassem duas, três ou até quatro apresentações em sequência.
Do quinteto que retornou agora, também para tocar no Rock in Rio no próximo domingo (15), somente Paice e Glover estiveram no palco em todas as 27 ocasiões. O primeiro, diga-se, foi o único a participar de todas as atividades do Purple. O segundo se ausentou do grupo apenas entre 1973 e 1976. Gillan, entre idas e vindas, só não veio com os colegas ao Brasil em 1991, quando Joe Lynn Turner lhe substituía. Airey se juntou aos músicos em 2002.
Com Morse, os quatro estabeleceram o lineup mais longevo de uma banda fundada há 56 anos — e que teve tantas formações a ponto de serem enumeradas, de “Mark I” a “Mark IX”. Seria preciso desafiar a ciência para que a atual, a nona, ultrapassasse as exatas duas décadas da anterior — faltam 18 anos. Mas depois do que se viu no palco na noite da última sexta (13), Chorão até diria que “o impossível é só questão de opinião”.
Como soa o Deep Purple 2024 ao vivo
Um público multigeracional, que abrangeu de jovens adultos a senhores, teve a oportunidade de assistir a um Deep Purple que pareceu ter recebido uma injeção de adrenalina. Dois elementos se justificam: a chegada de Simon McBride e a melhora na forma de Ian Paice após o mini-AVC sofrido em 2016.
Ian Gillan já admite em entrevistas que “os últimos dez álbuns ou mais não necessariamente foram compatíveis com a música tradicional” da banda. Isso significa: todo o catálogo com Steve Morse e ainda os últimos com o integrante clássico Ritchie Blackmore, fantasma que já não assombra mais a guitarra do grupo.
McBride trouxe consigo o peso que se espera de alguém que integra uma das bandas pioneiras do heavy metal. Da timbragem às escolhas de mão direita e/ou esquerda, sua escola no instrumento é totalmente oitentista, mais especificamente hard rock. Por vezes, “foge” à regra para introduzir discretos elementos neoclássicos, mas é de longe o guitarrista mais puramente roqueiro a passar pelo Purple, em contraponto ao jazzista e pouco convencional Morse e ao imprevisível Blackmore.
Tudo isso elevou a performance dos demais. Paice, coração da banda, é raríssimo caso de baterista que chega a uma idade tão avançada sem perder praticamente nada de sua técnica. O único indício de seus 76 anos é a decisão de transformar um dos surdos de seu kit em porta-toalha. Roger Glover, que de tão discreto apareceu no telão pela primeira vez apenas na penúltima música antes do bis, oferece toda a sustentação necessária para que McBride e Don Airey brilhem com solos. Até mesmo Airey, aliás, parece estar com mais “sangue nos olhos”.
E o que faz Gillan no alto de seus 79 anos é impressionante. Demonstrando marcas do tempo que vão das mãos trêmulas às longas saídas do palco em meio a solos, o cantor adaptou de forma inteligente quase todo o repertório clássico do Purple para que pudesse executar sem sofrimento — e consegue. Ele se contém nos gritos de “Highway Star”, não berra em “Hard Lovin’ Man” ou em “Space Truckin’” e aproveita vários descansos estratégicos em meio ao setlist. Mas quando se precisa, entrega, como nos gritos de “Lazy”, ao fim de “When a Blind Man Cries” ou durante toda a “Into the Fire” — a ponto de ser ovacionado na conclusão das duas últimas e ter seu nome aclamado na canção do álbum “In Rock” (1970).
Escolhas de repertório
Para que todos, especialmente Ian Gillan, ofereçam aquilo que se espera deles, é preciso trabalhar não apenas em ajustes em arranjos. As escolhas de repertório fazem toda a diferença.
Com 16 músicas, o set completo tem quase duas horas de duração além de três solos (um de guitarra e dois de teclado, com direito ao Hino Nacional Brasileiro tocado por Airey) e extensões instrumentais em meio a algumas canções.
Quatro faixas de “=1” se entrelaçaram aos clássicos, pois foram gravadas já no alcance de voz atual de Gillan, e obtiveram reações tão boas que o cantor chegou a se surpreender. A saber:
- a ligeiramente pesada “A Bit on the Side”, emendada na abertura “Highway Star” especialmente para oferecer conforto vocal;
- a hard rocker tipicamente Purple “Lazy Sod”, que, segundo o frontman, aborda um caso real de incêndio em sua casa (ô banda com histórico de fogo);
- a familiar “Portable Door”, com riff que remete à favorita dos fãs “Pictures of Home” e foi tão aplaudida a ponto de arrancar um “inacreditável” de Gillan;
- e a quase progressiva “Bleeding Obvious”, com ritmos quebrados e passagens que remetem até mesmo a “YYZ”, do Rush.
Vídeo
A “era Morse” é referenciada apenas com a grandiosa “Uncommon Man”, habitualmente dedicada ao saudoso tecladista original Jon Lord e precedida de um solo de guitarra encaixado antes mesmo de dar 30 minutos de show. Já entre os clássicos, tem-se cinco canções do álbum “Machine Head” (1972) — a incomparável “Highway Star”, a malemolente “Lazy”, a linda “When a Blind Man Cries” e as indispensáveis “Space Truckin’” e “Smoke on the Water” — e três de “In Rock”: “Hard Lovin’ Man” (resgatada para a turnê atual após 8 anos) a visceral “Into the Fire” e o encerramento com “Black Night”, que não pertence originalmente ao disco de 1970, mas saiu como single na mesma época e entrou em reedições comemorativas.
Lá no miolo do set, uma surpresa: “Anya”, faixa de “The Battle Rages On…” (1993) que desde 2022 virou presença garantida no setlist e fez o público do Espaço Unimed festejar, a ponto de cantarolar o riff principal. “Hush”, indispensável cover de Joe South, compõe o bis com “Black Night”. A única ausência notória no repertório é “Perfect Strangers”, hino que marcou o retorno do grupo em 1984 e que esteve presente nos shows no Brasil em 2023, mas o alto nível de exigência vocal torna sua ausência compreensível.
Alto nível
Ter consciência das limitações físicas que o Deep Purple atual pode sofrer chega até a reduzir as expectativas dos fãs para seu show. Os eventuais obstáculos são driblados com tamanha maestria que é comum fãs se surpreenderem ao assisti-los ao vivo pela primeira vez.
Especialmente após a chegada de Simon McBride, o Purple oferece uma apresentação recomendadíssima para se conferir. Testemunhar o que eles conseguem fazer no palco e até mesmo em estúdio — como em “=1” — é um privilégio o qual espera-se ter ao menos por mais alguns anos.
Vida longa a esses músicos. Vida eterna ao Deep Purple.
*Mais fotos ao fim da página.
Deep Purple — ao vivo em São Paulo
- Local: Espaço Unimed
- Data: 13 de setembro de 2024
- Turnê: =1 More Time
- Produção: Mercury Concerts
Repertório:
- Highway Star
- A Bit on the Side
- Hard Lovin’ Man
- Into the Fire
- Solo de guitarra
- Uncommon Man
- Lazy Sod
- Solo de teclado
- Lazy
- When a Blind Man Cries
- Portable Door
- Anya
- Solo de teclado
- Bleeding Obvious
- Space Truckin’
- Smoke on the Water
Bis:
- Green Onions (cover de Booker T. & the MG’s)
- Hush (cover de Joe South)
- Black Night
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Excelente resenha desse show histórico. Parabéns!!!
Ótima matéria, obrigado!
Estive lá ontem e vi parte do show lá na frente mas, tive de ir ao WC, e não consegui voltar lá. Fiquei por perto e, realmente, foi surpreendente. Muito bom mesmo. Faltou mesmo perfect strangers.
Excelente show!! Estive no Ibirapuera em 1991 para vê-los, sem o Gillan e pasmem, fui parar no Hospital São Paulo com glicose na veia, perdi o show. Mais de trinta anos depois estava lá e presenciei esse memorável espetáculo com o que é para mim o melhor vocalista do gênero. Vida longa ao Purple!!!