Não é mero marketing quando Dave Mustaine diz haver uma conexão especial entre ele — seja como pessoa física, seja como Megadeth — e a América do Sul, especialmente Argentina e Brasil. No caso dos hermanos, isso se reflete por meio da devoção dos fãs: a banda já gravou DVD ao vivo por lá (“That One Night”, 2007) e nesta atual turnê, agendou três datas na Movistar Arena de Buenos Aires, com capacidade para 15 mil pessoas. Já em nosso país, a relação adquire um caráter mais pessoal.
Não é só pelo fato de o Megadeth, entre 2015 e 2023, ter contado com um guitarrista brasileiro — Kiko Loureiro, também ex-integrante do Angra. O próprio Mustaine explica em entrevista ao site IgorMiranda.com.br:
“Quando fizemos nossa primeira viagem até aí para o Rock in Rio (em 1991), fizemos algumas amizades que mantenho desde então. Meu segurança por muito tempo, que levamos ao redor do mundo, é brasileiro. Comecei a treinar jiu-jitsu brasileiro há quase 7 anos e meu treinador, brasileiro e um dos meus melhores amigos, viaja comigo. E, claro, quem coloca a fantasia do Vic (Rattlehead, mascote) nos shows é brasileiro. É algo grande. Amamos os brasileiros.”
A sensação, claro, é agridoce em função da saída de Loureiro não muito tempo antes do show que aconteceu na última quinta-feira (18), no Espaço Unimed, em São Paulo, compromisso único no país. Fãs queriam ver o brasileiro novamente ao lado do Megadeth, como aconteceu em 2016 e 2017, ocasiões mais recentes. Mas é seguro dizer que a ausência do guitarrista não abalou a relação — até por tratar-se de algo bem anterior à sua chegada.
Também havia certa ansiedade no ar para enfim conferir o grupo, hoje completo por Teemu Mäntysaari (guitarra), James LoMenzo (baixo) e Dirk Verbeuren (bateria), após duas tentativas frustradas. Em 2019, a banda — que ainda tinha Kiko e David Ellefson nas vagas de Teemu e James — tocaria no Rock in Rio e excursionaria por outras cidades ao lado de Scorpions e Whitesnake, mas o fato de Mustaine ter sido diagnosticado com um câncer de garganta provocou o cancelamento de todas as datas no ano. Três anos depois, no pós-pandemia, o festival carioca chegou a confirmá-los novamente. Deu ruim: acabaram excursionando pelos EUA com o Five Finger Death Punch, em uma decisão que levou Dave, segundo o próprio, a demitir todo mundo do management.
O que se viu, enfim, foi espetacular. Muito acima das expectativas de vários fãs. Nas palavras de alguns, ouvidos por este escriba, uma das melhores apresentações do Megadeth no Brasil.
Acertos em meio a boa fase
O Espaço Unimed, casa que só não é perfeita porque seu ar condicionado nunca funciona bem, ficou bem cheio para receber Dave Mustaine, Teemu Mäntysaari, James LoMenzo e Dirk Verbeuren. A boa estrutura oferecida pelo local, escolhido pela sempre competente produtora Mercury Concerts, foi aprimorada com o rigor técnico da equipe do Megadeth: raríssimas vezes vi um show com tamanho capricho na qualidade de som — comandado pelo engenheiro brasileiro Stanley Soares — e de iluminação.
O quarteto protagonista demonstrou estar em boa forma. A começar por Mustaine. No auge de seus 62 anos, o americano da Califórnia nunca foi um vocalista per se, mas parece viver seu melhor momento desde que precisou abaixar meio tom das músicas para acomodar sua voz — que, vale lembrar, foi impactada por um tratamento de câncer. Só não consegue atingir alguns agudos de forma plena; de resto, tem tirado de letra. Na guitarra, seu instrumento principal, continua craque: o principal criador do thrash metal como o conhecemos é dono de uma das palhetadas mais poderosas do gênero.
Mäntysaari foi escolhido a dedo por Kiko Loureiro para ocupar a vaga. Talvez lhe falte um pouco de carisma (o homem não muda a expressão facial nem ao fazer o bend mais extremo) e manejo de palco (foi um crime ter ficado de costas em uma das partes principais do impecável solo de “Tornado of Souls”), mas a precisão técnica, o capricho na escolha de timbres e a fluidez de alguém que é headbanger raiz desde novinho justificam a escolha. O finlandês demonstrou identidade quando necessário, mas, de resto, executou perfeitamente as linhas criadas por seus antecessores.
LoMenzo, mais discreto, apagou rapidamente o incêndio provocado pela saída conturbada de David Ellefson. O também americano fez parte do grupo em outra ocasião, entre 2006 e 2010. Já está acostumado. Em São Paulo, raras vezes seu som ficou em evidência, como na introdução de “Trust”; contudo, saber cumprir seu papel é essencial para um músico de largo currículo — já tocou com White Lion, Zakk Wylde, John Fogerty e por aí vai.
Verbeuren é a cereja do bolo. Ou melhor, é a engrenagem que faz tudo funcionar. Talvez o melhor baterista a passar pelo Megadeth desde o saudoso Nick Menza, o belga ex-integrante do Soilwork demonstra caprichosamente ser o maior fã possível do grupo: executa cada virada de forma primorosa referenciando até mesmo gravações ao vivo de seus antecessores. E tudo isso com um jeitinho meio desengonçado. Parece que não vai dar conta, mas consegue com sobras.
O show
Mas já que a pauta é “acertos”, não houve mérito maior do que o setlist apresentado. Em vez de focar no álbum mais recente “The Sick, the Dying… and the Dead!” (2022) — que acabou representado apenas pela climática faixa-título logo na abertura —, o repertório apostou em uma compilação de maiores sucessos, com alguma pérola apreciada por fãs mais dedicados aqui e ali.
Das mais clássicas, talvez tenha faltado apenas “Mechanix”, que apareceu em algumas outras cidades da turnê latino-americana. De resto, esteve tudo lá:
- a emenda entre a surpreendente “Wake Up Dead” e a melancólica “In My Darkest Hour”;
- as pauladas virtuosas “Hangar 18” e “Tornado of Souls”;
- a despojada “Sweating Bullets”;
- a apreciada balada “A Tout Le Monde”;
- os cadenciados acenos ao hard rock com “Trust” e “Symphony of Destruction”;
- e o final com “Peace Sells” e “Holy Wars… The Punishment Due”, intermediado por uma pausa antes de retornar para o bis na última.
Praticamente todas as citadas foram cantadas — letras e também alguns riffs — e embaladas por rodas. E, sim, fizeram roda até em “Trust”. Enquanto isso, os apreciadores diehard foram agraciados com:
- “Countdown to Extinction”, faixa-título do trabalho de 1992 tocada apenas pela quinta vez em 11 anos;
- “Dystopia”, canção que batiza o disco de 2016 e que trouxe o primeiro Grammy para o Megadeth após dez indicações;
- e “Devil’s Island”, paulada do álbum “Peace Sells… but Who’s Buying?” (1986) executada pela terceira ocasião em quase uma década.
Tudo isso é tocado em pouco menos de 90 minutos, sem tempo para conversa. O velho Musta não tem tempo a perder. Comunica-se verbalmente duas ou três vezes, em momentos isolados, e olhe lá. Para o Megadeth, funciona: o público não consegue respirar e a energia se mantém. Num show de metal que não se propõe a ser longo ou a oferecer camadas muito distintas, é essencial compreender o ritmo a se proporcionar.
Saldo final
Quem deixou de conferir o Megadeth ao vivo por qualquer desconfiança — seja pelos vocais atuais de um agora veterano Dave Mustaine, mudanças na formação ou receio por repetições no setlist — acabou perdendo uma noite de gala. Todos os pontos mencionados foram devidamente driblados e houve ainda conquista de pontos extra pelos aspectos técnicos destacados anteriormente, como a qualidade de som e de iluminação.
O amanhã ninguém sabe, é claro. Porém, como se trata de uma banda que já veio 15 vezes ao Brasil, resta aguardar por uma 16ª visita que percorra mais cidades. Mais fãs precisam ser agraciados por este bom e velho, mas revigorado Megadeth.
*Mais fotos ao fim da página.
Megadeth — ao vivo em São Paulo
- Local: Espaço Unimed
- Data: 18 de abril de 2024
- Turnê: Crush the World
- Produtora: Mercury Concerts
Repertório:
- The Sick, the Dying… and the Dead!
- Skin o’ My Teeth
- Angry Again
- Wake Up Dead
- In My Darkest Hour
- Countdown to Extinction
- Sweating Bullets
- Dystopia
- Hangar 18
- Trust
- Tornado of Souls
- A tout le monde
- Devil’s Island
- Symphony of Destruction
- Peace Sells
Bis:
- Holy Wars… The Punishment Due
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Ola, Igor!
Excelente a resenha, e eu, que estive presente em todas as turnes do Megadeth no Brasil, desde 1991, concordo que foi talvez tenha sido o melhor show aqui. Rivaliza talvez com o do Rock in Rio de 1991, que trouxe a banda no auge, a turne do The System Has Failed, em 2005, que foi a que tinha um dos show mais longos, com cerca de 2 horas de duração, e a turne comemorativa de 20 anos do Rust in Piece, em 2010. Mas sao em épocas diferentes, e é difícil de comparar…
Como complemento à resenha, acho que vale o registro da fala do Dave à plateia, antes do encore, algo como “you don’t want us to play anymore”, talvez se queixando de uma eventual apatia do publico. Confesso que nao entendi a atitude, afinal de contas o show foi em dia de semana e seu publico tem uma parcela grande de quarentoes/cinquentoes, como eu.
Seu descontentamento ficou evidente no final, quando a banda toda saiu (capitaneada por ele) e nao ficou no palco distribuindo palhetas naquela parte final onde toca Silent Scorn no PA, nem fez aquela saudacao final ao publico com as maos dadas, seguida das ja emblematicas falas de DM: “I hope you had a great time, because we sure did. Drive carefully home, because we want to see you again”, e o bordão final: “you’ve been great, we’ve been Megadeth, good night”.
Foi uma pena…
Oi, Andre. Obrigado pelo comentário e por ter gostado da resenha, fico ainda mais lisonjeado por vir de alguém que assistiu a shows de todas as turnês nacionais.
Eu ouvi essa fala, mas poderia ter sido apenas uma brincadeira. Já a saída mais rápida do palco, sem a repetição do ritual, pode ter ocorrido por outras razões. Preferi não mencionar esses pontos para não criar uma notícia em torno de algo que desconhecemos as causas – ainda mais porque não tirou a qualidade do show. Espero que entenda. Ainda assim, agradeço novamente pelo comentário e por ter curtido o texto!
Claro, Igor!
Pode ter sido por outro motivo mesmo, mas achei importante só fazer o registro, mesmo que não saibamos exatamente quais foram as causas…
Abraços!
Porém, contudo, entretanto, ademais, parece que eles gostam mais da Argentina, tendo em vista o número de shows em Buenos Aires, não é de hoje.
Não é a banda que gosta mais da Argentina, é o público da Argentina que gosta mais do que o público do Brasil mesmo. Se aqui tivesse dado sold-out tão rápido como lá, teriam marcado mais datas. É uma relação diferente. Os argentinos são fanáticos mesmo.
O show realmente foi espetacular. Como você comentou, o setlist foi caprichado demais. Trabalhando, um dia melhores shows que já assisti.