O jornalismo sempre busca a isenção, mas há situações na vida em que se torna difícil separar razão e emoção. E como praticar jornalismo consiste em contar histórias reais, por vezes, também é difícil dissociar olhares crítico e de admirador.
O segmento musical do jornalismo, felizmente, permite que o emocional se sobressaia em algumas ocasiões. Digo isto porque a resenha a seguir, sobre o show que Ace Frehley fez no Tom Brasil, em São Paulo, no último domingo (5), pode não fazer sentido para quem não admirava o músico ou sua ex-banda, o Kiss, previamente.
A única apresentação de Ace Frehley no Brasil em sua curta turnê sul-americana teve um caráter emocional peculiar, em meu ver, pois Ace é notável por ter sido alguém que poderia ter oferecido (ainda) mais à música. Seus anos de hiato poderiam ter sido complementados com bons discos e turnês. Contudo, o errático guitarrista e ocasional vocalista se rendeu aos seus vícios (ou foi rendido por eles) em diversas ocasiões, o que lhe custou o posto de integrante do Kiss nas décadas de 1980 e 2000.
Mas vê-lo se apresentando ao vivo, no alto de seus 65 anos – e pela primeira vez em carreira solo no Brasil -, faz compensar o comportamento errático de outrora. Ace parece estar disposto a compensar o tempo perdido. E o show feito em São Paulo, para um cheio, mas não lotado Tom Brasil, demonstrou isto, mesmo com alguns erros técnicos a serem destacados.
A performance começou com poucos minutos de atraso, após as caixas de som rodarem a tape de “Fractured Mirror”, faixa que encerra o disco solo de Ace Frehley lançado em 1978. A abertura ficou a cargo de “Rip It Out”, do mesmo álbum, diferente dos shows anteriores, que o show se abria com “Parasite”. Afiada, a banda apresentou suas credenciais: além de Ace nos vocais e guitarra, a apresentação contou com o veterano Richie Scarlet (guitarra e vocais) e os competentes Chris Wyse (baixo e vocais) e Scot Coogan (bateria). Todos tocaram essa música muito bem.
Na sequência, Ace e sua trupe apresentaram “Toys”, do disco autoral mais recente (“Space Invader”, de 2014), e “Parasite”, clássico do Kiss composto por Frehley. O cover da banda mascarada ficou notavelmente lento, apesar de ter sido bem tocado. “Snowblind”, a seguir, sofreu com o mesmo problema, mas a plateia reagiu bem mesmo assim.
“Love Gun”, com Scot Coogan mandando muito bem nos vocais, e “Rocket Ride” levantaram a galera, enquanto a autobiográfica “Rock Soldiers” chamou a atenção por sua boa execução instrumental. Na sequência, Chris Wyse fez um solo de baixo que valeu pela dedicação – ele tocou trechos de “N.I.B.” (Black Sabbath) e “God Of Thunder” (Kiss) para animar o público -, mas era dispensável neste show.
Wyse assumiu os vocais na pesada “Strange Ways”, que embolou um pouco no instrumental, mas nada que comprometesse. Afinal, trata-se de uma baita música que praticamente nunca foi tocada ao vivo pelo Kiss. Em seguida, Ace apareceu com sua guitarra repleta de dispositivos de luz para “New York Groove”, original do Hello e regravada em seu disco solo de 1978. Um dos poucos momentos de maior interação promovido por Frehley, que deixou o público cantar o refrão antes do solo final.
“2 Young 2 Die”, com o empolgado Richie Scarlet nos vocais, foi dedicada à memória de Eric Carr, falecido ex-baterista do Kiss que era próximo a Ace Frehley. O Spaceman ainda duelou em solos de guitarra com Scarlet antes de seu grande momento, em “Shock Me”, uma das mais aguardadas pelo público. Na sequência, Ace fez seu tradicional solo com a guitarra disparando fumaça pelo captador. Se falta primor técnico, sobra impacto histórico – bastou que ele mostrasse o instrumento “em chamas” para que a plateia delirasse.
Para encerrar o show regulamentar, outro clássico: “Cold Gin”, também com bastante interação com o público – Ace deixou de cantar os versos para permitir que as vozes dos presentes ecoassem. O bis contou com uma boa versão de “Detroit Rock City” com Scot Coogan nos vocais e a arrasa-quarteirão “Deuce”, de volta para onde tudo começou, pois foi a primeira música que Frehley tocou com o Kiss.
Ace, até hoje, não está acostumado com a figura de frontman. Pouco interage com o público e, por vezes, se confunde ao cantar e direciona sua voz para longe do microfone, ou “capa” notas e acordes na guitarra. Richie Scarlet também erra nas seis cordas pelo excesso de empolgação. Scot Coogan toca corretamente, mas desacelerou em músicas importantes. Chris Wyse, tecnicamente, não parece ter cometido nenhum erro.
Entretanto, ninguém parece ter se importado com essas pequenas falhas, justamente pela importância emocional que esta apresentação teve para boa parte dos presentes. Eu, particularmente, não liguei – e curti muito o show. Ace e seus asseclas soaram como banda e escolheram o repertório com maestria.
Por tudo isto, foi um show para fãs que reconhecem Ace por seu legado. Quem esteve lá para ouvir o eterno Spaceman de peito aberto, sem ligar para possíveis erros de execução, saiu bastante satisfeito da casa de shows. Foi o meu caso.
Ace Frehley (vocal e guitarra)
Richie Scarlet (guitarra e vocal)
Chris Wyse (baixo e vocal)
Scot Coogan (bateria e vocal)
01. Rip It Out
02. Toys
03. Parasite
04. Snowblind
05. Love Gun
06. Rocket Ride
07. Rock Soldiers
08. Solo de baixo + Strange Ways
09. New York Groove
10. 2 Young 2 Die + solos de guitarra
11. Shock Me + solo de guitarra
12. Cold Gin
Bis:
13. Detroit Rock City
14. Deuce